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  • Foto do escritorValdemir Pires

O tempo existe?



Enquanto aguardo a chegada do encomendado Tempo: o sonho de matar Chronos (Ed. Zahar, 2023), do físico italiano Guido Tonelli (1950-), leio texto no BBC News Brasil enviado por uma amiga (Josiane “Pessoa”) que me alertou sobre o lançamento.


No terceiro parágrafo da matéria jornalística, deparo-me com uma afirmativa idêntica à que sustentei em uma crônica de um dos volumes de minha trilogia Tempo (Tempo micro, meso e macro): "Consideramos o tempo um conceito abstrato por sermos objetos macroscópicos, vivendo em uma espécie de 'mundo do meio', no qual o relógio parece fluir perfeitamente e igual para todos", quando, na verdade, “Tempo flui diferente em regiões distintas do Universo” (título da matéria). Nenhuma novidade. Também já conhecido o que será afirmado mais para à frente: "O tempo é uma substância, um elemento material."


O problema da existência ou não do tempo (em pauta no livro acima mencionado), é recorrente nas discussões científicas e filosóficas. O tempo, afinal, existe ou não existe? É um dado da natureza, detectável, ou mera criação da mente, intangível? É famoso o debate um dia travado publicamente entre o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) e o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), que não contribuiu para reduzir a controvérsia entre os campos de conhecimento de origem de cada um deles.


Situo-me entre os que, buscando um posicionamento frente aos argumentos conflitantes de Einstein (passado, presente e futuro são uma ilusão e o que existe, objetivamente, é o “tecido” tempo-espaço que dá materialidade ao universo) e de Bergson (o tempo é um dado da consciência – sua objetividade é mediada pela subjetividade ligada ao sentimento de duração interior), não pende para nenhum desses lados. Acredito que tenha havido um mal-entendido entre o físico e o filósofo, quando duelaram; assim como continua havendo entre os cientistas contemporâneos e todos aqueles que consideram válidos também outros modos de abordar a realidade e a existência, sem lançar mão do método científico – cuja objetividade stricto sensu, aliás, é objeto de polêmicas.


Talvez a pergunta promissora não seja: “O tempo existe ou não existe?”, mas “Qual a condição da existência do tempo?” Sim, antes de discutir a existência ou não de algo, convém inquirir sobre o que se entende por existir. E a resposta será, necessariamente, para o ser humano: “Existir é preencher determinadas condições para que algo seja considerado de algum modo presente ou capaz de ser levado em conta, capaz de influenciar, e às vezes determinar, a existência daqueles que se colocam diante do mundo inquirindo sobre a realidade.” Ou algo assim.


Partindo-se disso, há que se aceitar que há diferentes maneiras de existir, conforme sejam as condições impostas ou os pressupostos para se atribuir o status de existente a algo. E então fica claro que as condições científicas para aferição do real, do existente, não esgotam todas as possibilidades. Quem poderá afirmar, por exemplo, que Dom Quixote não existiu? Não basta dizer que ele não nasceu de uma mulher, como Cervantes, mas de um homem: Cervantes. Dom Quixote, apesar de produto da pena de Cervantes, é um pouco cada um dos seres humanos e cada ser humano é um pouco de Dom Quixote, mesmo que não tenha consciência disso. Na sua clara e belíssima definição como personagem complexo, Dom Quixote tem, aliás, uma existência muito mais bem delineada que qualquer ser humano – sua “existência” é menos periclitante em termos de ser o que é, do que a de qualquer homem concretamente existente.


Na lida com o tempo que sente passar, porque percebe que nada, nem ele mesmo, perdura, o homem lança mão de uma abordagem mitológica do mundo. Tanto que tempo é Chronos – mito grego; os nomes que recebem os dias também remetem a mitos; a semana tem sete dias e um de descanso e a ninguém escapa a analogia com a ideia da Criação, em que Deus folga no sétimo dia. Este tempo denso de humanidade, por acaso, precisa de alguma confirmação para ser aceito como algo existente? O que é “produto” da História é menos real do que aquilo que é “produto” da natureza?


Tinha razão Einstein, assim como Bergson, no mencionado debate, cada um considerando exclusivamente o seu ponto de vista: apenas não foram capazes de se entender, não foram capazes de observar um a partir do ponto de vista do outro. E isso afastou a razão de ambos, pois não foram capazes de esclarecer (talvez de perceber) seus respectivos – e aparentemente conflitantes – pontos de partida: ciência versus filosofia, em vez de ciência e filosofia. Bergson foi acusado de anti-científico, quando de fato nunca foi: ele apontava a insuficiência da abordagem científica para lidar com algo tão multifacetado como o tempo.


O tempo físico existe, concretamente (o que não quer dizer palpavelmente), embora atualmente esteja aguardando uma “teoria de tudo” que compatibilize (e não se sabe se isso é possível) a física relativista e a física quântica para se ver livre de controvérsias – ele, o tempo da física, se refere às condições de surgimento, sustentação e possível desaparecimento do Universo. O tempo “mental” (assim denominado por falta de melhor nome), por seu turno, também existe, referindo-se ao modo como vivem os seres humanos sobre a Terra e nas suas proximidades – de fato, sem este tempo “humano”, sequer poderiam estar sendo formuladas as questões científicas acerca da existência ou não do tempo.


Onde quer que vá, ainda que se aventure no meio do tudo-nada que é um buraco negro (onde o tempo perde sentido até mesmo para o universo) o ser humano leva consigo sua inexorável consciência, percepção e sensação de duração, de duração sabidamente finita – se o tempo, como tributário desse atributo humano não existe, há que se admitir que existir (objetivamente como a ciência exige) não tem a menor importância para sermos o que somos, a não ser pragmaticamente, em função dos meios materiais para sobreviver. E sobreviver é sub-existir, estar aqui, agora, mas sem poder sonhar.


(À espera de Tonelli. E, a propósito, Godot já chegou?)

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