Valdemir Pires
O tempo de ser

Função, funcionalidade, funcionamento. Expressões que remetem a obrigação a cumprir ou papel a desempenhar, assim como a modo de operar de um órgão, aparelho ou engrenagem. Em ambos os casos, características de seres ou coisas que lhes dão utilidade, vinculando-os a necessidades ou realizações desejadas. Assim como se quer que uma faca corte, espera-se que um operário execute tarefas que resultem em produção a um determinado ritmo. Faca cega e operário sem habilidade ou lento não funcionam e, portanto, são inúteis. Mais que isso, até: convém que os dois sejam descartados – a faca lançada ao lixo e o operário “cortado” da folha de pagamentos. Todo o tempo durante o qual a faca que não corta e o operário que não produz permanecerem um na gaveta e outro na linha de produção, será tempo perdido, embaraço, contratempo, obstáculos para que a atividade de cortar e de produzir ocorram como devem, com o máximo de resultado e contentamento. Faca e operário – coisas, do ponto de vista da utilidade – ficam à mercê de um juiz aparentemente supra-humano, com poder para aceitá-los ou rejeitá-los.
Pessoa: ser vivo, dotado não só de um conjunto organizado e sistemático de órgãos (como todos os demais seres vivos, dentre plantas e animais), mas também de uma consciência de si, dos outros e do mundo (espaço, tempo, relações e mistérios), mergulhada em necessidade irresistível de atenção alheia, de afeto, de cuidado.
Pessoas, umas em relação às outras, desempenham papéis, assumem obrigações, desde o nascimento até a morte. Não poucas. O tempo todo. Com e sem prazer. Quanto tempo se vive sem que alguma função ou obrigação esteja ocupando a atenção ou exigindo a ação de cada um? Quanto tempo de uma vida escapa à luta pela sobrevivência material e ao manejo do poder intrínseco às relações interpessoais e sociais?
Pessoas, portanto, transformam-se basicamente em funções. Seres-máquinas que movem suas engrenagens conectadas a outras engrenagens (outros seres-máquinas) o tempo todo. Quando uma deixa de fazer isso – para de cumprir sua função, geralmente não é a máquina colossal que para de funcionar (pois ela é uma espécie de moto-contínuo), mas é essa engrenagem singular disfuncional que é esmigalhada, se não se deslocar para outro ponto do sistema intrincado.
É nos curtos intervalos em que não estão cumprindo funções, ou respondendo a obrigações, que pessoas são pessoas e não seres-máquinas. É nesses interstícios temporais “em branco” que cada um pode se perder ou se encontrar – em meio a esse nada em termos de funções e obrigações pode-se procurar por algo que vá além dessas funções e obrigações. É ali que se instalam as perguntas: O que sou eu? Quem eu sou? Serei eu algo ou alguém?
Foge-se facilmente dessas perguntas aflitivas dando-lhes respostas banais, do tipo: Eu sou alguém necessário a muita gente. Sou um bem sucedido executivo! etc. Responde-se à questão do ser com uma função ou obrigação, ou seja, coisificando a vida, dando a ela um teor que não é essencial, mas acidental, ainda que escolhido, pois escolhido dentre opções padrão – respondendo-se ao que é esperado desde fora. E tudo bem: assim é a vida – pensa-se e abraça-se a resignação. E é aí que reside a armadilha fatal: o que é continua sendo, ainda que a condição de ser-máquina cada vez mais se afirme e vá chegando o dia em que a máquina-ser (inteligência artificial) tornar-se-á mais relevante do que já é, na continuidade da vida.
Para a inteligência artificial (que não é viva no sentido de estar vinculada a um organismo celular que perece), o tempo é apenas um conceito matemático, pois ele não está ligado inexoravelmente à finitude (como está na mente humana). Para a inteligência artificial, a condição de coisa (ser-máquina) é “natural”, artifício que é... Ela será sempre, portanto, superior ao ser humano que se perde da sua condição de pessoa. E ela nunca será pessoa, pois sê-lo já é difícil até mesmo para um ser humano, tendente à objetificação em funções e obrigações na máquina-mundo.
Onde a esperança? Na capacidade humana de fugir às armadilhas, na potência do ser humano para, com quase nada, sonhar o tudo, abstrair espaço e tempo em busca do infinito, do eterno, fugindo ao imediatamente útil. Em uma palavra: a esperança está na arte, que da técnica toma o meio, a seu modo, negando-lhe a condição de fim.