Valdemir Pires
O passado não é o mesmo para todos

Zygmunt Bauman (1925-2017), em Amor líquido (p. 110, trad. de Carlos Alberto Medeiros, pela Zahar, 2004) afirma:
O passado é uma grande quantidade de eventos, e a memória nunca retém todos eles. E o que quer que ela retenha ou recupere do esquecimento nunca é reproduzido em sua forma ´prístina´ (o que quer que isso signifique). (...) O ´passado como um todo´ (...) nunca é recapturado pela memória. (...) Ela seleciona e interpreta – e o que deve ser selecionado e como precisa ser interpretado é um tema discutível, objeto de contínua disputa. Fazer ressurgir o passado, mantê-lo vivo, só pode ser alcançado mediante o trabalho ativo – escolher, processar, reciclar – da memória.
O passado, um tempo que já se foi, pode ser recuperado. Mais que isso: os esforços para sua recuperação devem ser permanentes, uma vez que sem passado, o homem, como indivíduo ou como sociedade, perde densidade enquanto ser que é, simultaneamente, construtor e tributário da História. Uma pessoa sem passado seria destituída de laços com os outros e ficaria à deriva frente ao mundo e ao tempo. Uma sociedade sem passado seria incapaz de se perceber como tal e encontraria severos obstáculos para se manter coesa. A biografia (passado individual), assim como a História (passado coletivo) são construtos da memória que funcionam como alicerces do eu e do nós.
Nem a biografia nem a História são dados objetivos: elas são um quebra-cabeças nunca completo, com peças faltantes e também com peças sobrepostas. Ainda assim, fornecem do eu e de nós aquela imagem sem a qual nem eu nem nós conseguiríamos saber quem somos (e temos sido) e, portanto, não seríamos capazes de decidir favoravelmente ao que desejamos ser. Com toda precariedade com que lida com a percepção de sua trajetória individual e coletiva ao longo do tempo, o ser humano e a Humanidade dependem da memória, da recuperação do passado para serem o que são.
O ato de escolher, processar e reciclar na tentativa de recuperar o que foi o passado não é simples nem mesmo quando se trata da vida de uma pessoa (biografia), ampliando-se sobremaneira no que tange ao passado comum, pois no caso da “construção” deste comparecem pontos de vistas distintos e opiniões divergentes, além de interesse conflitantes. Em suma, o passado nunca é prístino (relativo a um estado passado, “tal como foi” na distância do tempo – original, intocado); ele é sempre um tempo recuperado sob o efeito de uma distorção do olhar.
De certo modo, o passado é um acordo (comigo mesmo, no tocante á biografia, e uns com os outros ao se referir à história comum). Ele é um tempo que não se recupera exatamente tal como foi. Ademais, mesmo quando estava sendo – quando era presente – já não desfrutava daquilo que stricto sensu é a almejada objetividade. Entre seres pensantes, criativos e conflitivos, toda objetividade existe matizada de subjetividades em negociação entre si, com maiores ou menores graus de discordância. A memória é seletiva, seja por falhas intrínsecas ao seu modo de funcionar (“O passado é uma grande quantidade de eventos, e a memória nunca retém todos eles.”), seja por conveniências frente às adversidades da vida (geralmente é o vencedor quem conta como foi a batalha vencida).
O passado não só não é, como não pode ser o mesmo para todos. Que uma específica recuperação de eventos anteriores ao presente seja aceita e sirva de baliza à compreensão deste presente e dos seus possíveis desdobramentos, isso é uma construção considerando-se um consenso de difícil obtenção e de duração tão mais longa quanto maiores os esforços para que assim seja. Quanto mais longínquo for o passado a que se refira esta construção negociada, menos periclitante será, na medida em que o afastamento beneficia a redução de conflitos de interesses, embora amplie as dificuldades de aproximação das coisas em si: é mais fácil aceitar uma interpretação do passado apesar de dúvidas quanto a como pode ter sido, que devido a rejeições de leituras que questionem interesses ainda em vigor.
Mesmo não sendo mais e sendo dúbio quando forçado a ser novamente (pela via da memória), o passado é um tempo que “vive” em nós, ao servir de espelho à imagem que fazemos do nosso eu e de nosso nós. A precariedade desse espelho não é outra coisa senão reflexo da precariedade do nosso ser no transcorrer do tempo, ser que vai se definindo enquanto vai sendo, nunca pronto, a não ser quando termina.