Valdemir Pires
O passado é um espaço vazio?

Teju Cole ( 1975-), em Cidade Aberta (p. 189, trad. de Rubens Figueiredo, pela Cia. das Letras, 2012), escreve, antecipando o encontro inesperado que ocorrerá em Bruxelas entre as personagens Julius e Moji Kasali, irmã de um seu antigo amigo:
Experimentamos a vida como uma continuidade e só depois que ela fica para trás, depois que se torna passado, enxergamos suas descontinuidades. O passado, se tal coisa existe, é em sua maior parte um espaço vazio, uma vasta área de nada, em que flutuam pessoas e acontecimentos importantes.
Para a ciência, negar que o tempo se fraciona em passado, presente e futuro, tornou-se lugar comum, desde o posicionamento contundente de Albert Einstein (1879-1955), não obstante algumas posturas contrárias, quando se atravessa as fronteiras das ciências da natureza. Na Filosofia, o tema se torna mais espinhoso, pois nesse campo do conhecimento o tempo não é investigado como dado objetivo da natureza, mas como percepção, conhecimento, sentimento, sensação, admitindo-se a metafisicidade e até a transcendentalidade como “partes” da realidade ou, pelo menos, como elementos presentes na sua manifestação quando dela participa o ser humano cognoscente.
Teju Cole, todavia, não é taxativo, não se posiciona definitivamente: “O passado, se tal coisa existe”... Portanto, pode existir, como pode não existir, fica-se na dúvida. Mas o romancista nigeriano é claro quanto ao que o passado é, no caso de existir: “(...) é, em sua maior parte, um espaço vazio, uma vasta área de nada...” Vasta área de nada. O que seria isso? Um nada muito grande, mas identificado com uma área, ou seja, um espaço! Então, o tempo é identificado, de algum modo, com o espaço, cuja definição, se vazio ou sempre ocupado, é, por sua vez, objeto de outras controvérsias metafísicas desde os gregos.
Não cabe, partindo de uma afirmativa literária, avançar na exegese. Até porque, Cole mantém a conveniente ambiguidade artística: a vasta área de nada é “apenas” a maior parte do nada em que o passado consiste. Além dela, ou no seu interior, “flutuam pessoas e acontecimentos”. “Importantes” – destaque-se. No meio do nada, seres e fatos que não são desprezíveis e, assim sendo, não podem ser simplesmente descartados. E flutuam, não ficam no mesmo nível, do chão, que o indivíduo a cuja existência estiveram (estão?) ligados.
Que coisa! Complicada, misteriosa, inquietante. É de legar ao desprezo qualquer conclusão científica acerca da existência ou não do passado. A ciência, que jamais teria surgido se não existisse memória (ou seja, dados a partir dos quais raciocinar), o que tem a dizer sobre a própria memória, senão que ainda é um mistério? Talvez Santo Agostinho (354-430 d.C.) tenha razão, quando afirma que o passado é uma espécie de presentificação do que já se foi – lembrança. Existe por força da memória no presente.
E então, Cole pode ser tomado como um agostiniano sofisticado, ao admitir o passado como memória: aquele “lugar” vazio em que ficam flutuando pessoas e acontecimentos. Essas pessoas e esses acontecimentos “aterrissam” por força de algum acontecimento presente, como, por exemplo, um reencontro. A aterrissagem é a evocação, que consiste em tornar algo ou alguém “presente” pelo exercício da memória ou da imaginação. Lembrar, imaginar: exercícios de presentificação não objetiva do passado, com a devida percepção de que “presentificação não objetiva” carrega uma contradição entre os termos. Nem por isso deixa de acontecer, no dizer de Cole, que “aquilo que parecia ter evaporado de todo” volte “a existir”.
Este exercício de diálogo entre leitor e escritor poderia prosseguir, aqui. Mas interrompe-se para que seja feito o convite: ler Cidade Aberta, deixar-se encantar pela descrição da solidão quotidiana de alguém (Julius) à procura de si, depois de ter saído da África ensimesmada no passado do capitalismo e mergulhado na vida citadina global e plenamente mercantilizada.
A solidão, mesmo a involuntária, é um portão aberto para adentrar o passado. O envolvimento muito intenso nas relações e acontecimentos do presente fecham este portão, às vezes impedindo que o indivíduo mantenha consigo, de alguma forma sob seu poder, aquela névoa (o passado) que faz dele um eu com alguma consistência diante dos outros, presentes.