Quando eu era criança, antes da idade escolar, morava com meus avós, convivendo apenas com adultos: os avós maternos (Angelim e Angelina) e quatro tios solteiros (Arlindo, José Carlos, Cláudio e Sílvio). A avó (também madrinha, como eu a chamava) cuidava da casa e de mim, enquanto os homens trabalhavam da manhã à tarde, indo para o trabalho de bicicleta (os que tinham emprego na cidade) ou, os que eram boias-frias nos canaviais de Araras, em caminhões com carrocerias cobertas por encerados, conduzidos pelos “turmeiros” (mais tarde pejorativamente chamados de “gatos”, pelos sindicalistas). Lembro-me de muitos episódios deste tempo, que certamente deixou marcas profundas naquilo que vim a ser, tanto positiva como negativamente. Eram todos os dias iguais, começando de madrugada, com o cheiro do café preto e forte, que tomavam antes de sair para o trabalho, e da comida quentinha que depois esfriaria nas marmitas que levavam; e terminando com o retorno dos homens por volta das dezoito horas, famintos e disputando o único banheiro para tomar banho. Nas quintas, dia de namoro, havia mais confusão nessa disputa, porque nenhum dos rapazes queria se atrasar para encontrar suas “belas” (palavra dita com sotaque italiano, imitando o bisavô).
Com o recrudescer do regime militar e consequente aumento das notícias sobre mortes de “terroristas” e “comunistas”, aquele pobre e pacato lar foi tomado de inquietação. Ninguém entendia bem o que estava acontecendo, só se sabia que não era tempo de facilitar a intervenção do azar. Todos passaram a ter medo, tanto dos “comunistas” (que “cominam criancinhas” e não hesitavam em matar “cidadãos de bem”), como dos chamados esquadrões da morte (que caçavam os “comunistas”, mas, de quebra, também espancavam os que cruzassem seu caminho com andar suspeito ou careta acintosa).
A avó rezava alto á noite, pedindo proteção aos filhos fora de casa (o mais novo na escola noturna e os demais na praça com as namoradas ou nas ruas com os amigos). O avô estabeleceu horário máximo para retorno, vigiando diariamente, nisso resultando carraspanas de vez em quando, porque a moçada não era amiga do relógio.
– Você só vai aprender quando o esquadrão da morte lhe ensinar, né? – dizia o avô depois de “recepcionar” o tio recalcitrante.
Quanto a mim, sempre dentro de casa, sob a tutela dos adultos, não havia que ser tão drasticamente ameaçado. Mas também vivia sob o medo da polícia. Recriminando as eventuais traquinagens, a avó terminava dizendo:
– Vai obedecer ou vou ter que chamar a polícia?
O tom era de galhofa, mas lá estava a polícia, como ameaça que paira mesmo ausente.
Fosse possível a uma criança saber o que sabe um adulto que já estudou e tem consciência cidadã e apreço pela democracia e pelo Estado de Direito, eu responderia à madrinha:
– A polícia terá pedido da Justiça para entrar aqui e me levar? Se tiver, quero alertá-la: eu terei depois meios constitucionais de me defender, com ajuda de um advogado e, então, ficará provado que você me acusou de algo que não se caracteriza como crime: desobedecer a avó e não limpar os pés no tapete antes de entrar na sala, enlameando o piso quando chove.
A minha avó me ameaçava a partir do que entendia ser o papel da polícia, sem nunca saber o que era, ou deveria ser, a polícia do papel, a polícia tal como estabelece a lei que todos devem respeitar, inclusive os policiais. Ela se limitava a perceber a corporação policial como detentora da força, utilizando-a indiscriminadamente: afinal, ela era analfabeta e via o que estava acontecendo durante a ditadura militar. Não era do seu conhecimento que o uso da força policial é, ou deve ser, disciplinado pelas leis, funcionando mais como ameaça do que efetiva distribuidora de pancadaria a torto e a direito. Escapava-lhe que a prepotência e a covardia deveriam ficar longe do comportamento, das atitudes e das ações de cada policial, sua formação deixando isso muito claro, logo ao ingressar na corporação.
Foi-se, felizmente, embora tarde demais (vinte e um anos!), o regime militar, derrotado bravamente pelo povo, nas urnas e nas ruas, sedento por liberdade e, nas casas (nos casos daqueles que as possuíam ou podiam pagar aluguel), faminto devido aos baixos salários ou, pior, ao desemprego. Mas continuou a existir, ainda que menos à vontade, ainda que com a presença de alguns oficiais e tropas mais bem preparados, aquela polícia com seu papel real discrepante do preconizado pelo papel ideal da lei. E no momento atual (2024, ano em que alguns celebraram a memória dos sessenta anos do início da ditadura militar!!!) a mesma corporação policial, no Estado de São Paulo, saudosa do tempo dos camburões e das “Rotas”, e zelosa do equivocado adjetivo militar que consta de sua denominação, abriga indivíduos que unem suas vozes para entoar gritos em louvor a arbitrariedades monstruosas cometidas no passado, condenadas pela Justiça e abominadas pelas pessoas com um mínimo de apreço à democracia, ao Estado de Direito e aos Direitos Humanos.
É de se esperar que haja tempo e vontade política, além de pressão e vigilância da sociedade civil, para preservar a força policial paulista da crescente contaminação por ideias autoritárias que tendem a deformá-la, levando a que se torne monstruosa como certas milícias e o famigerado esquadrão da morte que se pensa estar morto e enterrado.
É de se esperar que aqueles cidadãos encantados com o horrendo discurso bolsonarista despertem para o risco de a polícia pela qual eles clamam para eliminar “bandidos” (antes mesmo de prisão regular, inquérito e julgamento) venha, a qualquer momento, a também considerá-los bandidos, sem que haja tempo de se defenderem.
É de se esperar que a fração não contaminada da força policial de algum modo reaja, também, à gangrena, sabendo-se, como sabem os que não julgam senão cabeça a cabeça, que existe na Polícia Militar do Estado de São Paulo, esta fração consciente, cidadã, republicana e democrática no conjunto dos policiais. Que cada policial seja capaz de perceber que ao aumento da letalidade da decorrente da atuação da sua corporação sempre corresponderá o aumento da letalidade entre policiais, em meio a uma verdadeira guerra civil que já não pode mais ser escondida da sociedade, fermentada pela recente facilitação para aquisição de armas.
É de se esperar que o governador Tarcísio zele pela segurança pública do Estado de São Paulo sem perder de vista que o papel da polícia deve corresponder à polícia do papel, cuidando, inclusive, que os homens e mulheres que nela ingressam sejam instruídos a este respeito e para que os que nela estão sem este preparo sejam atualizados.
Digo isso tudo por uma espécie de dever de cidadão politicamente consciente, mas também por puro egoísmo: dos tempos vivendo com meus queridos e saudosos avós, eu gostaria de lembrar apenas dos bons momentos, como aquele em que meu tio José Carlos, depois de anos sem falar com meu tio Cláudio, após brigarem feio (não me lembro por que motivo certamente torpe), se reconciliaram, enquanto Cláudio convalescia de uma facada que, buscando o peito, atingiu-lhe o braço, em desavença com um rapaz da vizinhança, por motivo de que também não me lembro. José Carlos acabou percebendo a falta que o irmão lhe faria, caso tivesse morrido, não fosse socorrido a tempo, recolhido sangrando ao caminhar cambaleante de volta à casa.
Do episódio entre o tio José Carlos e o tio Cláudio, lembro cristalinamente da beleza do momento de reconciliação entre duas pessoas para as quais havia “caído a ficha”, sabendo que beleza seria ainda maior e mais profunda caso acontecesse entre duas metades conflagradas da população de um país , uma delas raptada por ideias torpes que, no caso, bem sei quais são.
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