O kit de sobrevivência, o fim da Pax Americana e a América Latina
- Valdemir Pires
- 3 de abr.
- 4 min de leitura

Alimentos, água, medicamentos, lanterna, rádio de ondas curtas e pilhas para estes prosaicos aparelhos: estes são os itens do kit de sobrevivência por 72 horas que os responsáveis pela Preparação e Gestão de Crises da Comissão Europeia estão sugerindo que os países membros levem seus cidadãos a ter em casa desde já. Chama a atenção o item para comunicação: rádio de ondas curtas, em plena era dos satélites e da internet – a fabulosa infraestrutura de comunicação atual (o telefone celular mantendo cada indivíduo conectado com todos, o tempo todo) pode ser anulada em situação de guerra. Imagine-se o que significa uma população que se aproxima de 450 milhões de pessoas (quase 6% da população mundial), buscando nas lojas (físicas ou virtuais) um ultrapassado rádio de ondas curtas. Superada a emergência, que poderá ser feito das fábricas de rádios, caso sejam ampliadas para o atendimento da excessiva demanda concentrada no tempo e depois quase totalmente anulada?
Ao kit devem ser acrescidos documentos de identificação, necessários para se saber quem é quem no meio da confusão de cidadãs sob bombardeio (utilizando drones, muito mais baratos e fáceis de manejar que os equipamentos mais sofisticados que antes se impunham aos enfrentamentos) e, além disso, para que se possa descobrir sem excessiva dificuldade quem é cada um dos mortos recolhidos durante ou após os combates e ataques.
Afastada a hipótese de que talvez seja exagerada ou uma iniciativa para causar um nível de pânico favorável a certas decisões em princípio impopulares, que precisarão ser tomadas (mais gastos com defesa, recrudescimento do serviço militar obrigatório etc.), a medida preventiva proposta aos países da União Europeia é, talvez, o mais notável elemento indicativo de que uma grande guerra, generalizada, está se iniciando, na esteira dos já duradouros conflitos entre Rússia e Ucrânia e entre Israel e os palestinos, que obscurecem outros, regionais, como, por exemplo, a guerra civil no Iêmen (onde se confrontam um tanto veladamente Arábia Saudita/Estados Unidos e o Irã) e a invasão do Congo por Ruanda (que pela primeira vez coloca em xeque um acordo africano geral de respeito às fronteiras pós-independências).
O estopim para este quadro de alerta vermelho na Europa tem nome: Donald Trump – e não Putin, com sua já duradoura invasão da Ucrânia. O recém-eleito presidente americano rompeu uma tradição iniciada com a participação de seu país no bloco dos Aliados na Segunda Guerra Mundial (garantindo assim a vitória contra Hitler) e continuada com o Plano Marshall para reconstrução dos países europeus em ruínas: Trump recusa-se a mover-se em apoio à União Europeia para dissuadir Putin de combater na Ucrânia até a vitória, provável se Kiev não receber reforços concretos, especialmente em armas, munições, mas também em suprimentos.
A leitura da situação em curso a partir de uma perspectiva histórica é a de que está chegando o fim a chamada Pax Americana (período caracterizado por redução de conflitos graças à política externa da potência máxima atual, os Estados Unidos), que substituiu a Pax Britannica (século XIX ), por sua vez sucessora da Pax Romana da antiguidade. Com a necessária ressalva de que Pax Americana talvez seja um eufemismo para uma hegemonia sob a qual aconteceram conflitos altamente letais e desestabilizadores, como, por exemplo, a Guerra da Coreia (1950-1953), a Guerra do Vietnã (1964-1975), a Guerra do Golfo (1990-1991), a Guerra do Afeganistão (2001) e a Guerra no Iraque (2003).
Salta aos olhos o fato de que o potencial conflito generalizado que parece estar se iniciando não é para assegurar o suprimento de matéria-prima essencial ao funcionamento das economias industriais (como foram as guerras por petróleo, hoje em estado de “guerra fria” menos ideológica), nem para neutralizar ou eliminar um dos lados do conflito capitalismo x comunismo (Guerra Fria). Trata-se, agora, de proteger mercados (até então sob o regime de livre comércio da globalização) e indústrias ameaçadas pela avassaladora inovação vivida desde o final do século XX, puxada pelas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) e aceleradas pelo surgimento de uma nova potência industrial/comercial: a China, que está lançando sombras sobre o capitalismo europeu e ameaçando a máxima potência atual, os Estados Unidos.
Trump, de olho no avanço chinês, não só desfere golpes ao livre comércio, com seus tarifaços irrefletidos, mas também levanta e brande o sabre, sem qualquer pudor ou temor, apontando na direção da Groenlândia (Dinamarca e, portanto, União Europeia) e do vizinho Canadá.
De todos os continentes, aparentemente a América Latina é a única onde o cheiro de pólvora ainda não chegou, neste momento inquietante, em que pese a questão do Canal do Panamá. Mas quem tenha nariz funcionando e desentupido, disposto a farejar, já sente um cheiro podre no ar, por aqui (não é só na Dinamarca que há algo de podre). O que impede que Trump se lance contra Cuba (ideologia), México (imigração), Venezuela (petróleo) ou Brasil, argumentando ser a Amazônia pulmão do mundo e, portanto, patrimônio de todo o mundo, mal-cuidado pelo Brasil (como a Groenlândia pela Dinamarca).
Frente ao fim da Pax Americana, diplomacia e política pública de defesa nacional são áreas de atuação governamental que, no Brasil e nos países da América Latina, precisam ser revistas, atualizadas, fortalecidas. E convém que o sejam levando em conta o resgate (ou verdadeiro início, para além de retóricas circunstanciais) de um diálogo continental, uma vez que juntos os ibéricos do novo mundo podem ter melhores chances de sobrevivência, fato que os europeus descobriram há mais tempo, talvez porque em sua história a guerra tenha estado muito mais presente.
Excelente texto!!