A Arquitetura é, das artes clássicas (Pintura, Escultura, Música, Literatura, Dança e Arquitetura), a mais potente para, a partir do espaço, evocar o tempo, para não dizer acessá-lo, ainda que imaginariamente. Porque a arquitetura produz artefatos que são lugares – arte em que se pode entrar e sair. Costuma-se dizer que “as paredes têm ouvidos”. Isso é verdade, mas uma verdade particular: vale para uma ou outra parede atrás da qual alguém bisbilhota o que outrem fala do lado oposto. Acerca das paredes há, também, uma verdade geral, válida para todas: elas se projetam no tempo, para frente e para trás – têm memória, carregam do passado e projetam para o futuro o espírito do tempo de sua construção.
A cultura ocidental, de que as cidades são a mais duradoura manifestação e o mais forte registro, pode, em grande medida, ser historicamente compreendida por meio de seus edifícios, logradouros, vias, canais, monumentos. Nelas, exemplares arquitetônicos icônicos têm o potencial de remeter o visitante do presente ao passado ou ao futuro. Dois casos ilustram essa possibilidade: as maiores catedrais e os mais altos edifícios do mundo. Trata-se de dois extremos da arte da construção, que são datados: as catedrais situam-se temporalmente na Idade Média e geograficamente na Europa, irmãs dos castelos e fortalezas; os mais altos (e ousados) edifícios pertencem ao tempo atual (Modernidade e Pós-Modernidade), fincados em locais de grande importância para a economia global, contemporâneos das máquinas que proporcionam rapidez na produção, nos deslocamentos, nas comunicações e que, há décadas, atingiram seu ápice na disseminação dos computadores.
Catedrais e grandes edifícios apontam, ambos, para o céu, aspiram à máxima verticalidade: vistos de longe, sobrepujam tudo ao seu redor – símbolos indubitáveis de poder, de origem religiosa e econômica, respectivamente.
Enquanto as catedrais são portais para o passado, os grandes edifícios o são para o futuro. Quem já visitou uma e outro sabem perfeitamente disso, tendo sentido “na pele” o “espírito do tempo”, ao caminhar lenta e silenciosamente da porta ao altar de uma catedral e ao observar os arredores no mirador do topo de um arranha-céus de linhas arrojadas. Quem não teve essa experiência pode dela ter uma “amostra-grátis”, oferecida pela admirável tecnologia contemporânea da internet. Basta que visite virtualmente duas obras arquitetônicas muito representativas das aqui mencionadas genericamente: a Catedral Notre-Dame de Chartres, em Paris (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_m9upPjfoOI ) e o Burj Khalifa, em Dubai (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=lflCmjW7RlI ).
A observação externa e a imersão no interior dessas edificações fabulosas, prova do engenho, da arte e da potência econômica de seus construtores (entendidos como projetistas, executores, organizações e sociedades que as realizaram), como que abrem um canal direto, na mente, de comunicação com o tempo, para trás e para a frente – o passado remoto das Cruzadas (Notre-Dame) e futuro, logo ali, das tecnologias capazes de em pouco tempo transformar um deserto em cidade maravilhosa em termos de funcionalidades e confortos para o consumo massivo (Dubai). Colocam em confronto, respectivamente, o monje beneditino em oração contumaz e o executivo global em ação incessante; o imaginado silêncio celestial e o concreto ruído urbano-industrial terreno; o desejo de salvação da alma e a ambição da carne por riqueza mundana; Ocidente e Oriente (novas Crruzadas?); beleza artesanal (de pedra, esculpida e empilhada) e beleza industrial (de aço e vidro, moldados, soldados e parafusados); eternidade (medieval) e fugacidade (pós-moderna).
A sensação final resultante desse “ensanduichamento” arquitetônico-temporal é a de um presente atônito, ao qual chegam apelos do passado (quietude, fé, oferenda) e convites do futuro (agitação, prazer, consumo), que dificultam a escolha da direção a tomar, em termos de valores e sentimentos, abrindo-se as comportas para posturas e atitudes típicas dos indivíduos e coletividades urbano/pós-industriais contemporâneos, seres contraditórios e basicamente infelizes, em meio às alegrias postiças da solidão imersa na multidão, alternando euforia e depressão, sem jamais encontrar a beatitude ou a simples calma.
Distópicos tempos, estes, em que os templos apontam para o céu não para dele se aproximar (na esperança de um Paraíso) ou dele receber as luzes, através de vitrais coloridos; mas para poder ver, abaixo, a terra a explorar, com vistas a mais e mais acumular. Tempos e templos de autoafirmação da provada mente, à revelia de uma não comprovada alma. Tempos e templos de angústia festiva, a que foge qualquer verdadeira celebração.
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