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Foto do escritorValdemir Pires

Enlevo: o porquê de a arte ser fundamental



Viver vem depois de sobreviver. A vida é o que se pode ter depois de assegurada a sobrevivência, já que sobreviver é conseguir o mínimo para não morrer: respirar, beber e comer, proteger o corpo da nudez e do clima, ter onde ficar ao abrigo das intempéries e dos perigos do mundo – sobreviver à natureza; dissuadir e persuadir os outros diante de suas reais e potenciais ameaças, em conflitos de interesse e divergências de percepção – sobreviver às relações com os outros.

Mas vida e sobrevivência, por serem inseparáveis, se confundem entre si. E uma vez confundidas, torna-se difícil voltar à distinção que, de fato, existe entre elas. Desde que passamos a viver em cidades cada vez maiores e mais complexas, segmentadas geográfica e profissionalmente, os aspectos econômicos, sociais e culturais se emaranhando uns com os outros,  aumentou a porção da vida requisitada quotidianamente para ser “consumida” em processos destinados à garantia da sobrevivência (em patamares de conforto crescentes), apesar do cavalar aumento da produtividade resultante da industrialização que acompanhou (engendrou, seria mais correto dizer) a urbanização. Na cidade, com sua produção tipicamente fabril, incessante em qualquer estação do ano, ninguém pode saber ao certo o que é viver e o que é apenas sobreviver; lança-se mão de entretenimentos – produzidos à exaustão para atender aos demandantes que por eles podem e aceitam pagar – a fim de esquecer a confusão. E a vida – ou sobrevivência? – coletiva segue em frente, os indivíduos nela “pendurados”.

Viver assim é correr o risco de perder totalmente e ter a certeza de ver diminuída a mais valiosa dádiva da existência humana: o enlevo – sensação de êxtase, propensão ao arroubo, fruição de deleite face aos seres, às coisas, aos acontecimentos, aos fenômenos.

O enlevo é uma alavanca emocional. Ele é a ferramenta do poeta – com ela a poesia (de que o poeta é um agente só em parte consciente) transforma uma palavra num mundo de percepções emotivas, um alinhamento de palavras num universo infinito de sentimentos. Sem enlevo não há poesia, sem poesia, não há vida – apenas sobrevivência, por mais confortável e até prazerosa que possa esta ser.

É do enlevo que nos vem o que de transcendente habita (ou margeia? ou toca? ou incensa?) nosso corpo tão pouco diferente daqueles que a natureza ofereceu aos outros seres que conhecemos e com os quais coexistimos.  

            Magia, encantamento, delícia inexplicável, arrebatamento – um pairar sobre o meramente carnal e mortal, sem dele desatar as amarras invisíveis e intangíveis – eis o que oferece o enlevo, sem que seja fuga: é na verdade o abraço apertado que se dá à vida, abrindo caminho em meio ao cipoal cerrado da sobrevivência. Coisas do espírito, da alma? Talvez, pois seriam o corpo e a mente, por si só, capazes de enlevo? Neste caso, enlevo seria apenas uma ilusão da mente, que, aliás, alguns poderiam dizer que pode ser artificialmente acessada com alucinógenos, por exemplo.

            Magia, encantamento, delícia inexplicável, arrebatamento: atributos da arte, enfim. Artes plásticas e visuais, cênicas, musicais, literárias, todas, como vias, pontes, dutos, janelas para passar da sobrevivência à vivência (vida): enigma cuja decifração precisa ser perseguida, não com o desejo de chegar, mas com vontade se caminhar até o fim.

            Sem isso, o demoníaco sortilégio de andar por aí, cada um mais um na multidão de solitários, carregando troféus conquistados pela capacidade de sobrevivência, mas à procura de holofotes inexistentes para iluminar a vida, que não se vê senão à luz de velas ou sob os raios de sol filtrados pelos coloridos vitrais da catedral. Sem enlevo, é o chão e, abaixo daquele em que se pisa, a vala final, à espera do inevitável desenlevo absoluto.

            Enlevo! Enlevo, por favor! Uma pitada que seja, por dia, para cada um. Nem é preciso voltar da cidade para a taba, dos arranha-céus para as ocas (impossível!) – basta, todo dia ou toda noite, um olhar para o céu, seguido de um fechar de olhos, para poder ver que este lugar é imensamente pequeno e este ser que o vê é menos que insignificante e, ao mesmo tempo, para poder sentir que tudo e todos, aqui neste chão, são manifestações de um enigmático milagre, digno de ser encantadoramente experimentado, em meio a tantas inevitáveis dificuldades. Enlevo! Arte (verdadeira)! De verdadeiras ciências e falsas religiões estamos abarrotados. A um custo que logo saberemos impagável.

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