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Emprego líquido



Imagem: Wix
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(Breve ensaio em construção. Sugestões são aceitas. Comentários são bem-vindos.)


É oportuno refletir sobre o emprego, na atualidade, a partir da abordagem sociológica inaugurada e consolidada por Zigmunt Bauman (1925-2017), uma vez que também as relações entre empregadores e empregados/potenciais contratados entraram numa nova fase, em que o que era sólido aceleradamente vai se tornando líquido. Vários são os aspectos em que o fato se evidencia. Alguns:

 

Uma vida inteira dedicada ao trabalho, mediante contratação formal por uma, duas ou três empresas, até “conquistar” a aposentadoria, mediante contribuição obrigatória a um sistema público de previdência social, é algo cuja solidez praticamente já inexiste. Mas ainda não desapareceu do processo de formação de expectativas pessoais da massa trabalhadora, ou seja, da imensidão de pessoas que até agora tem vivido de seus empregos.

 

A longa duração de um contrato de trabalho, ao contrário do que acontecia no passado, não é mais um indicador positivo para o contratado: é indício de estagnação em tempos de apreço pela mudança e pela inovação (necessárias à competitividade); já o contratante, teme empregar formalmente por longo tempo, face aos compromissos que é obrigado a assumir e aos crescentes custos para a eventual/futura demissão. Assim, os contratos de trabalho estão se tornando líquidos, a ponto de assumirem uma configuração jurídica que os nega enquanto tais: a isso se dá o nome de “uberização” ou, no Brasil, “pejotização” – quando o indivíduo não atua usando o número de seu CPF (Cadastro de Pessoa Física), mas seu CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). Um uberizado ou pejotizado não tem empregador/patrão, mas clientes. Portanto, quanto mais vinculado a um ou poucos contratantes, pior sua imagem: é alguém que não consegue ampliar sua carteira de clientes (ao contrário da mentalidade anterior, em que quanto mais se pulava de um emprego ao outro, menos confiável era o trabalhador).

 

Paralelamente, o Estado garantidor da solidariedade intergeracional, necessária ao bom funcionamento de um sistema de aposentadorias não tem mais honrado seu papel, promovendo sucessivas reformas da previdência social, que resultam em perdas de direitos, quando não no desbaratamento de parcelas significativas de poupanças forçadas praticadas ao longo da vida laboral na forma de contribuição previdenciária. Tais reformas, por seu turno, acabam sendo inevitáveis, na medida em que cresce o número de beneficiários com o passar do tempo (envelhecimento da força de trabalho), ao passo que os jovens ingressantes contribuem escassamente com o fundo intergeracional, em decorrência da redução do volume de empregos, por força das inovações tecnológicas e também pela precarização dos empregos atuais, aí incluída boa parte da pejotização. Enquanto o contratado formalmente (carteira assinada) contribui obrigatoriamente com a previdência (desconto em folha de pagamento), o pejotizado tende a reter o valor da contribuição para gastos correntes, na medida em que, geralmente, obtém baixa renda mensal. O emprego líquido é acompanhado pela previdência líquida.

 

O emprego sólido implica uma jornada de trabalho diária de oito horas, durante cinco ou seis dias por semana, em local único, sob supervisão e mediante registro (assinatura de lista de presença ou acionamento de relógio-ponto no início e no final da jornada). Já o emprego líquido realiza-se em home office, nisso havendo uma sensação de liberdade, mas que pode, de fato, resultar em jornadas que não são claramente delimitadas. Ainda há controvérsia no tocante à adoção generalizada desta prática, seja porque em alguns setores ela não é funcional (não dá para plantar mandioca ou recolher o lixo das residências em home office), seja porque a prática da feitoria de escritório ainda vigora, e não como simples resquícios do passado.

 

Home office, por outro lado, é uma alternativa que torna líquidas as fronteiras nacionais que limitavam contratações. Hoje as empresas globais se beneficiam de custos menores de contratação fazendo uso de colaboradores em áreas geográficas financeiramente vantajosas (mão de obra mais barata e menos sindicalizada, por exemplo), graças às possibilidades de colaboração online em equipes multinacionais e multilinguísticas (o inglês como idioma mediador). As fronteiras que já haviam se tornado líquidas para o capital, graças à rede mundial de computadores, agora o são também para o trabalho. A atividade produtiva, em muitos setores, acontece em firmas (nome que os economistas dão ao locus individual de produção) líquidas. Assim, investimentos educacionais que o governo de um país faça por anos, dirigidos à população local, não raro “vazam” para localidades no exterior.

 

Os investimentos em capital humano, tão louvados pelos economistas nas décadas de 1950-1990, ingressaram,  por seu turno, como se constata há anos, na era da modernidade líquida. Cursos/diplomas que funcionavam como chaves para ingresso e permanência em determinados mercados de trabalho, agora, quando muito, são meras senhas, que se modificam a intervalos cada vez mais curtos, as antigas deixando de funcionar. A educação formal vai perdendo peso e importância, cedendo espaço para formas e métodos de aquisição de conhecimentos/habilidades com focos mais restritos e pragmáticos, dando ensejo que bem poderia ser chamado de conhecimento profissional líquido, em contraposição ao modelo anterior, solidamente amparado em “estoques” e não em “fluxos” de conhecimentos/informações/habilidades.

 

As soft skills passaram a ser favoravelmente consideradas, como nunca antes, na medida em que trabalhar eficazmente passou a ser colaborar com o grupo proativamente, numa cultura leggo de junção criativa de partes. E o curioso é que essas habilidades se adquirem e se ampliam fazendo/praticando, participando, vivenciando, não em salas de aula ou cursos. As grandes empresas as incentivam, avaliando resultados a partir de equipes e de elementos que indicam adequadas interações entre indivíduos e grupos, premiando os melhores, muitas vezes com ações (mais que participação nos lucros), que dão aos colaboradores não apenas um sentimento, mas uma efetiva condição financeira de coproprietários: capital líquido e trabalho líquido misturando-se.

 

Linkedin e congêneres menos afamados são comunidades de indivíduos ocupados ou disponíveis, mostrando-se e oferecendo-se diuturnamente, obsolescendo as antigas práticas de recrutamento, embora às vezes aconteça o que foi notícia recentemente: empresas contratando robôs sem saber que o estavam fazendo. Quem envia currculum vitae impresso pratica um ato fora de moda, destinado ao fracasso, embora a eficácia dos meios digitais para obter colocação seja duvidosa para a maioria, beneficiando, aí sim, os profissionais mais escassos no mercado, como, por exemplo, atualmente, os da área das tecnologias da informação. A força de trabalho líquida se apresenta virtualmente, inclusive a que faz parte do que antigamente se chamava exército industrial de reserva.

 

Novas profissões aparecem e antigas desaparecem sem qualquer prévio aviso, afetando mentalidades. O antigo intelectual é substituído pelo digital influencer, rebaixando a qualidade da oferta de reflexões – a referência relativamente segura cede lugar à influência ruidosa e sem fundamento. Os profissionais da comunicação de massas perdem seus empregos porque redes e comunidades online ocupam o lugar dos antigos veículos analógicos como canais de difusão da informação corrente – os fatos e a verdade tornam-se líquidos, para não dizer gasosos. Engenheiros e outros profissionais calculistas são substituídos por programas de computador, motoristas tornam-se desnecessários em veículos autodirigidos e assim por diante. O sonho de um lugar ao sol na idade adulta, por meio de um emprego que se consegue graças a um tipo de contribuição aos demais (bem ou serviço que atende necessidades concretas) cede lugar à vontade de ganho fácil (ou aparentemente fácil), fazendo com que jovens potencialmente ingressantes no mercado de trabalho recusem-se a fazê-lo, sem encontrar algo para ocupar seu tempo, voluntariamente ocioso pela recusa em desenvolver uma trajetória profissional começando... do começo, pelo primeiro degrau. Explode o turnover nas atividades de baixa qualificação (atendimento no varejo, serviços pessoais, consertos domésticos, por exemplo), mais exigentes em termos de duração do turno e de energia/disposição física; bons profissionais em áreas de trabalho pesado (pedreiros, eletricistas, encanadores etc., na construção civil, por exemplo) tornam-se raros e caros – o emprego sólido restante cobra seu preço.

 

Agricultura, pecuária, construção civil e indústria tradicional, setores que se desenvolveram oferecendo o emprego sólido do passado, já não são as válvulas de escape para o desemprego de uma população com baixa qualificação, pois neles avançou rapidamente a mecanização e, agora, a computadorização: já nem se pode mais falar com acerto de camponeses, operários, pedreiros/serventes, pois tal como antes concebidos, não mais existem. Esses profissionais da era do mercado de trabalho sólido foram substituídos pelos seus congêneres num mercado de trabalho líquido, em que atividade manual e atividade mental inexistem em estado puro.

 

O emprego líquido tomou distância e vai ganhando o espaço do trabalho sólido bruto, sujo, extenso, vigiado, desagradável, embora não em todos os setores, áreas, indústrias, países. Se ele ainda não se tornou predominante, dá sinais de que será. E a transição não está sendo tranquila, apontando para um futuro com problemas maiores que os atuais, problemas ainda desconhecidos na sua extensão e profundidade.

 

O fulcro da problemática do emprego líquido reside no avanço das máquinas no interior do processo produtivo, indo da liberação dos braços/mãos/força humanos à dispensa da inteligência “natural” nos afazeres produtivos menos complexos (que são a maioria), sem que sejam reconfiguradas as condições mercantis-acumulacionistas que regem as relações de trabalho.

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