Valdemir Pires
Comprar o próprio tempo de volta?

A partir de certo momento da vida – geralmente quando a carreira profissional vai um tanto avançada, já tendo sido experimentados alguns sucessos e variados fracassos – adquire-se uma sensação (que em geral se tenta esquecer, para não enlouquecer) de que o tempo que se vive está vendido. É aquele momento em que se começa a pensar em aposentadoria, ainda com medo de a redução dos rendimentos rebaixar a qualidade de vida.
Pensa-se que quando a escravidão era a forma de impor o trabalho pesado e/ou rotineiro, esta sensação não existia, ocupando seu lugar uma outra, pior: a de privação da liberdade, reconquistável somente mediante rebelião, com alto risco de vida. Não, não era assim, pois mesmo na forma de escravidão mais brutal, como a dos negros nas Américas, um certo grau de conformismo (cimentado pelo terror, evidentemente) permeava a relação senhor-escravo, as rebeliões e revoltas estourando apenas de vez em quando. Na escravidão antiga, como a existente, por exemplo, na Grécia, aquele que servia e aquele que era servido eram vistos como partes naturais de uma relação indispensável, sendo possível falar de bons senhores e bons escravos, como fazia Sócrates, sem considerar a subordinação quase total de um homem pelo outro um mal em si, ou um ou outro polo dessa relação como naturalmente mau.
A compra da liberdade ou a alforria era, por assim dizer, o correspondente à aposentadoria do escravo, não estando relacionada ao seu envelhecimento, mas a circunstâncias específicas que pudessem torná-la viável. Essa libertação (comprada ou dada) era esporádica e nunca foi uma garantia ou um direito, claro, até que a prática da escravidão foi totalmente abolida (embora nunca tenha deixado de ser um sonho de retorno para tantos “capitalistas” modernos e pós-modernos) e o assalariamento tomasse seu lugar.
No assalariamento, aquele “sossego” de ser apenas escravo e nunca homem (com outros afazeres e inquietações que não o trabalho quotidiano permeado pela alimentação e sono restauradores das condições, para continuar trabalhando até o fim da vida) desapareceu. O indivíduo assalariado começou a ter algum tempo livre e sua própria vida (ter que se virar para morar, vestir, comer etc. e “fazer-se”), isso dando início a um sonho: o de ser verdadeiramente livre, sem patrão, no mínimo no fim da vida. E, claro, isso mudou tudo, na vida de todos e de cada um.
A mudança, entretanto, foi de forma, não de conteúdo. Antes o escravo pertencia ao senhor (ele todo e sua família), agora SOMENTE a maior e mais valiosa parte do tempo do assalariado pertence ao empregador (aliás sempre desejando se livrar dele, substituindo-o por máquinas), as migalhas restantes servindo para dormir e acessar alguma “distração” (mormente as melhores sendo pagas) que permita a ilusão de que “vale a pena”. Junto com a nova relação surgiu a falsa, mas nítida, ideia de liberdade, mais nítida para aqueles poucos que “ganham bem”. Mas, de fato, existe alguma diferença fundamental?
O assalariamento permitiu uma mobilidade social que no escravismo (pesado ou “leve”) não seria e não foi possível, e que está na base de uma sociedade mais propensa à inovação, tanto técnica como social e cultural, cujo resultado é uma forma de vida mais vibrante, inclusive por conta da competição estabelecida entre os indivíduos para progredir e obter riqueza, sucesso, poder, status. Todos, em tese, podem brilhar, mesmo que para alguns, grande brilho venha de pouco esforço para acender (ou ascender) e para uns muitos, pequeno brilho geralmente venha de grande esforço para atiçar a brasa.
Há um dado novo, agora. Na sociedade dita pós-capitalista (embora de fato não seja), repudia-se o assalariamento como no começo do capitalismo repudiava-se a escravidão. Ser chamado de trabalhador, atualmente, é como ser xingado. Colaborador, parceiro, stakeholders até, vá lá, mas assalariado! Cada qual com seu “capital humano”, seu “capital intelectual”, seu “capital simbólico”, se arvorando a empreendedor: eis o mote.
Mas enquanto os slogans de liberdade e riqueza obtidas com o próprio talento (singular) e iniciativa (louvável) são gritados e escritos em luz neon em toda parte, o homenzinho comum, que ali vai, todo empetecado de bugigangas e novidades físicas e retóricas, sonha todo dia comprar de volta o seu tempo (de assalariado, de fato e/ou de lei, assumido ou disfarçado) para vivê-lo do jeito que quiser, hora a hora, dia após dia, até morrer – pensa ele – em paz. Trabalhar até quase morrer, sem parada e sem horário predeterminado, vai aos poucos se tornando uma ideia fixa entre jovens profissionais, nos grandes centros urbanos, em grandes empresas – mas isso ganhando o suficiente para, lá pelos quarenta e poucos, comprar de volta o próprio tempo sem, como consequência, ficar à míngua de uma aposentadoria provida pelo instituto público (em decadência em todos os países), já que o lastro para o futuro deverá ser (e orgulhosamente conquistado) o ganho acumulado com o trabalho duro, mas bem pago, de duas décadas e não de uma vida inteira, posto a render juros compostos.
É isso: o dito pós-capitalismo conseguiu uma façanha, que é a escravidão consentida, da juventude aos quarenta e poucos, a troco de uma possível alforria dali para diante. Se a coisa der certo (o que é pouco provável), o mundo se verá diante de um numeroso contingente desses novos pequenos ricos, usufruindo turismo, espetáculos, gastronomia, entretenimentos etc., de nariz empinado, roupas e penteados tardiamente sensuais, carros velozes e reluzentes, casas vistosas, sentindo-se senhores do mundo e dos outros, agindo da mesma maneira que os escravos livres que, no passado, fizeram de si mesmos senhores de outros.
Paralelamente, como ninguém quer (e nem deveria querer), trabalhar a vida toda (e nem é mais possível, afinal, a economia de alta tecnologia assimilar todo mundo que vai nascendo por aí, e vivendo tanto), os fundos que sustentam com dinheiro declinante (recolhido dos trabalhadores ativos formais restantes) a aposentadoria dos que se retiram do mercado de trabalho por idade, essa idade vai esticando cada vez mais, de modo que se aposentar pelo instituto público já começa a ser miseravelmente ganhar uns poucos anos para esperar a morte chegar, e ainda assim, sob penúria.
Paralelamente, também, esforçar-se pouco (na preparação ou realização de um trabalho) e sentir-se brincando ao realizar uma atividade glamourosa, ao mesmo tempo em que fica famoso e rico por isso (tipo digital influencer ou subcelebridade de alguma “arte” ou até da pornografia) é uma opção acalentada por não poucos, jovens ou não.
Será possível alguma forma minimamente decente, aceitável, humanamente digna, de as pessoas poderem, no mundo atual, comprarem, em algum momento de suas curtas existências, seu tempo de volta ou, desde o início, não vendê-lo tão mal? Haverá saídas individuais para este problema coletivo tão grave? Difícil responder, mas uma coisa é certa: cada um olhando simplesmente para o próprio umbigo, todos estão ameaçados pela proximidade do abismo que juntos cavaram sem se dar conta disso.