
Caro Alberto, ao contrário do que você pensou (e me disse em sua última carta), não me aborrece nem cansa manter esta nossa conversa à distância. Distância geográfica, quero dizer, porque ideológica e filosoficamente tenho a impressão de que estamos ainda mais próximos do que quando interagíamos em sala de aula. O diálogo é bem mais fácil e torna-se agradável quando ambas as partes têm genuíno apreço pelo esclarecimento, um mínimo de gosto por teorias, alguma base de experiência comum. Quem sabe dessa nossa conversa não emerge algo que possa ser útil também a outros?
Acho que a afirmativa principal (assim me pareceu) de sua última carta é, sim, uma ousadia, como classificou-a, mas não vejo nenhum problema em ousar – é necessário, acredito, para não se patinar na busca de compreensão e transformação da realidade. A não ser que se ouse abusivamente, sem parar e, sobretudo, fazendo uso de argumentos vazios, sem fundamentos, ilusórios (autoenganos) ou oportunistas (para “ter razão” em discussões).
Sua afirmativa foi de que a democracia, atualmente, está dando mostras de voltar-se contra si mesma. O que o preocupa, como alguém que deve lidar, quotidianamente, com a mobilização de recursos para materializar decisões democraticamente tomadas pelos governantes, seus chefes em nome do povo (conforme preconiza a democracia representativa). Entendo perfeitamente sua preocupação e, de fato, tranquiliza-me saber que a tem, pois um gestor público que não percebeu o problema, ou o negligencia, está longe de merecer o adjetivo de bom agente público, com a densidade tecnopolítica do qualificativo.
A democracia se volta contra si mesma, com certeza, quando a massa eleitoral frequentemente faz escolhas que, avaliadas com base na estrita razão, são as piores possíveis para ela mesma. Acontece, nesses casos, algo como baratas (kafkianos insetos) escolhendo, para liderá-las e cuidar de seus interesses, o aplicador de inseticida, porque este é forte, decidido e sempre faz seu trabalho com absoluta eficácia. Por mais absurdo que isso passa parecer, acontece. É que a democracia atual (diferentemente da grega) é um fenômeno de massas; e as massas não agem considerando apenas a razão – muito pelo contrário, há elementos na decisão coletiva de massas que são carregados de emoção, quando não de irracionalidade pura e simples. Não é por outra razão que as massas são motivos de temor e até de pânico.
Você considera que a eleição de Trump nos Estados Unidos (a segunda ainda mais que a primeira), de Milei na Argentina e de Bolsonaro no Brasil, assim como de vários outros líderes de direita e de extrema direita na Europa, são indícios fortes da democracia se voltando contra si, mesmo em países onde ela tem servido de exemplo para o mundo todo. Eu penso do mesmo modo.
Talvez estejamos errando, e muito, ao pensar nossas democracias de massas, interrelacionadas entre si em nível global, com os instrumentos analíticos aplicáveis à democracia originária, a grega, que não era de massas nem representativa. Na nossa democracia, a opinião que se manifesta nas urnas não é, imediatamente (sem mediações), a do povo, porque este não a forma com base em debates minimamente cuidadosos entre os diretamente interessados (o que é, na prática, impossível – daí a invenção da representação). O que hoje existe, e se atomiza em votos depositados nas urnas, depois reagregados na apuração, é uma “opinião pública” densamente contaminada por fundamentos e interesses que são gratuitamente oferecidos e passivamente aceitos pelos “cidadãos comuns” (os eleitores medianos), fundamentos e interesses esses “embalados” como se fossem os mesmos do cidadão comum, quando não necessariamente o são.
Há poucas décadas, o processo de convencimento do cidadão comum a favor de candidatos e políticas contrárias aos seus interesses e à sua visão de mundo era manejado utilizando-se instrumentos como os jornais e revistas (imprensa), o rádio e a televisão. Quando a TV foi acrescentada aos meios de comunicação de massas, aconteceu uma revolução na propaganda, que muitos perceberam, denunciaram e nunca deixaram de temer. Seu efeito sobre modos e padrões de vida – de consumo, essencialmente – foi cavalar; e não poderia ser diferente no tocante às escolhas referentes ao consumo de bens públicos, oferecidos pelos governos, com base em programas e projetos delineados nas plataformas eleitorais dos (antes) candidatos, sob o guarda-chuva de uma ideia de sociedade ideal: com mais Estado (liberal) ou com menos Estado (social-democrata).
Agora veja, Alberto: o que é a televisão, comparada aos atuais instrumentos de comunicação de massas da internet, utilizados com as possibilidades de manejo do incomensurável volume de dados facilmente obteníveis online, submetidos a algoritmos aplicados com finalidades específicas, direcionáveis ao bel prazer dos detentores da tecnologia? O que na era da TV se chamava manipulação coletiva (fruto da propaganda e do marketing, unidirecionais, analógicos), tornou-se algo mais forte que manipulação (que nome dar a isso?), pois é uma coisa que, aparentemente bidirecional ou multidirecional, aparentemente dialógica, termina, de fato, indo numa única direção (do interessado para o alienado inconsciente de sua condição de “inocente útil”), capturando e submetendo aquele que se envolve, por exemplo, com as redes sociais virtuais.
Não lhe parece, Alberto, que à manipulação moderna (utilizando primeiro a imprensa, depois o rádio, depois a tv e, finalmente, combinações dos três) se sucedeu a atual manipulação pós-moderna, na passagem de uma tecnologia analógica para uma tecnologia digital? Manipulação, tanto num caso como no outro (no último com eficácia ampliada), levada a efeito para direcionar tanto escolhas de consumo quotidiano, como opções eleitorais de tempos em tempos; e até mais: para sub-repticiamente hegemonizar valores, comportamentos e instituições convenientes a um determinado tipo de sociedade não explicitado.
Massiva, amplamente massiva, como nunca foi; movida por um tipo de “comunicação” de massas (digital e falsamente dialógica) cujo alcance a humanidade ainda não conhece de todo; e contraditoriamente mergulhada numa noção de narcisista de indivíduo – eu, eu, eu; sobretudo eu – que não aceita uma necessária dose de restrição à liberdade individual (a partir do Estado democrático, idealmente) em troca de um tipo de vida coletiva que, afinal de contas, é condição para existências individuais com maior potencial de realização: eis a nossa democracia representativa, pós-moderna, pós-liberal, que acredita num mundo pós-Estado. E não ao modo marxista, em que este deixaria de ser necessário porque, instrumento de domínio de classe, desapareceria com o desaparecimento das classes.
É com ela, com esta democracia nova, ainda em construção e já vivenciando escombros, que você lida todo dia, Alberto. E agora eu posso lhe perguntar, como a qualquer gestor público de hoje em dia: é possível administrar a coisa pública sendo apenas um excelente – mesmo que se trate da máxima das máximas excelências possíveis – técnico? E espero que ninguém responda que sim. O que nos leva a um problemão: ao decidir e agir com base num padrão tecnopolítico (como tenho defendido), como um gestor público, num cargo ou carreira de Estado, você não usurpa o “direito” que só o político (eleito) tem, de decidir e agir em nome do povo que o colocou na condição de liderança? Você não teria que se restrintir ao seu papel de técnico, mero viabilizador das decisões tomada pelos políticos? A resposta carece de um retorno a reflexões weberianas (absolutamente modernas), em busca de percepções e concepções que possam ir além delas, sendo pós-modernas, cronologicamente (mas não ideologicamente) falando. Exigência exagerada, esta, para quem está assoberbado com encaminhamentos para que o bem público seja produzido e chegue a quem dele precisa, Alberto? Sim, não é? Então, o que fazer? Não é um assunto dos mais dignos de debate entre nós? Ele tem estado presente nos eventos acadêmicos e profissionais de que você tem participado? Ah, sim: parabéns por não abandonar esses espaços! Jamais faça isso, sob pena de ser engolido pela “máquina de moer inteligências” em que se constituem as organizações públicas capturadas pela lógica pseudoburocrática desresponsabilizante.
Força aí, Alberto! Não permita que esta verdadeira aventura tecnopolítica em que você está envolvido seja transformada, pelas circunstâncias ou pelas pessoas, ou mesmo por equívoco seu, em terrível desastre político-administrativo ou infeliz escolha profissional. Você tem formação e abraça valores que são bons e suficientes antídotos contra isso: utilize-os todos os dias!
Professor Valdemir, suas cartas ressoam profundamente em quem trilha o caminho da gestão pública com compromisso e inquietação. Como ex-aluno e gestor, vejo em Alberto o reflexo de muitos de nós: a esperança de transformar, o embate com estruturas estruturais e a necessidade constante de equilíbrio entre técnica e política. A cada nova experiência, confirma-se que a boa administração não é apenas um exercício de método, mas também de sensibilidade e resistência. Suas palavras reafirmam a importância de não esmorecermos diante dos desafios, pois a construção de instituições sólidas e justas é um trabalho contínuo. Obrigado por esse olhar que orienta e provoca.