
Olá, Alberto! Esta carta lhe chega antes da sua resposta à minha última. É que fiquei preocupado com sua manifestação de desânimo no nosso mais recente contato. Pareceu-me que o principal motivo do seu desalento é que, como você mesmo disse: “na maioria das vezes não se faz o que deve ser feito nem como deve ser feito; fala-se muito em planejamento, mas age-se às cegas e atabalhoadamente”.
Não é bem assim, sabe? Não há como negar que descaso, irresponsabilidade, despreparo (para não dizer pura incompetência) são encontradiços em todo o setor público. Mas, preste atenção: muitas vezes são interesses não explícitos que levam a decidir e realizar sem respeito aos parâmetros da racionalidade técnica, geralmente interesses privados que se movimentam sub-repticiamente no interior da “máquina pública”; outras vezes as coisas são malfeitas porque caem na esteira de conflitos políticos e partidários, um lado procurando prejudicar o outro, sem consideração ao fato de que ao fazê-lo acaba prejudicando o interesse público e, às vezes, a própria democracia. É impossível eliminar completamente este problema. O máximo que se pode fazer – e deve ser feito – é dotar as instituições públicas de mecanismos de defesa contra essas ocorrências, tarefa histórica, que se começa hoje para chegar à conclusão lá na frente. Dedicar-se a ela com afinco e perseverança vale uma vida. Pena que hoje em dia poucos, como você, pensem assim - mas perceba que você não está só. E é exatamente por esta sua bela convicção que nossa “relação epistolar” se mantém com gosto (e rio ao dizer assim, “relação epistolar”, sabendo que você também rirá, pois conhece meu gosto por zombar da linguagem excessivamente formal, principalmente do juridiquês).
“Salvar o Estado” da privatização e da corrupção deixou de ser um objetivo facilmente defensável, não é mesmo, Alberto? Desde as últimas décadas do século passado o que se propõe é fatiá-lo, lançar ao lixo os “excessos” (limitar o papel e reduzir o tamanho do Estado), desinfetar partes podres e aplicar antídotos a novas contaminações, juntar o que sobrar e que seja indispensável para amparar os interesses econômicos privados dominantes, deixando de lado a ideia de Estado do bem-estar social. Mas a receita, sob o olhar da História e de um mínimo de perspicácia sociológica, não parece razoável e, além disso, depois de sua aplicação ao longo das últimas décadas, os efeitos colaterais dolorosos começam a provar sua ineficácia.
Em todo caso, você, Alberto (cidadão-eleitor-contribuinte-beneficiário das ações governamentais), assim como Alberto (um comprometido e competente gestor público municipal), está devidamente vacinado contra este blá-blá-blá anti-Estado e contra os governos, que tantas vezes descamba para o autoritarismo desbragado, sob o argumento enganoso de liberdade sem limites e a qualquer preço (uma impossibilidade humana).
Meu objetivo é, como você está percebendo – e não poderia ser outro, dados os valores de que sou portador e que compartilhamos – contribuir para que não desanime, jamais. Você sofrerá no seu trajeto profissional em governos, mas também terá belas pequenas (e também algumas maiores) colheitas; ao final da caminhada (que seja longa!), tenha certeza de que se sentirá orgulhoso, de cabeça erguida.
Uma maneira de sofrer menos, talvez até não sofrer, é olhar a vida como ela é. Você foi um estudante dedicado, tanto na graduação como na pós-graduação. Por isso, tem um profundo conhecimento de como as coisas, no Estado, nos governos, nas administrações públicas devem ser e como (por quais caminhos, com que meios de deslocamento) precisam ser realizadas. O que acontece é que, antes de um grande acúmulo de experiência, decorrente de anos de prática persistente e refletida, a gente não se dá conta de que a realidade é bem mais complexa, multifacetada, sujeita a fatores fora de controle do que imaginamos na teoria, nos modelos, nas racionalizações “higienizadas” das “falhas”, principalmente humanas. É isso: o trabalho nos governos é, acima de tudo, com gente e pela gente toda a que eles devem servir – e trata-se de entes, essa “gente”, para dizer o mínimo, complicada, controversa, incerta, temerosa com relação ao futuro e aos outros com quem se relaciona etc. E não dá para substitui-la por outra gente. Há que conviver com ela. E com simpatia, no mínimo, desejando-lhe o melhor possível, e atuando para que assim seja.
Longe de mim, muito longe, afirmar, como pode parecer levianamente lendo o que acabei de escrever acima, que “na prática a teoria é outra”. Não, jamais. Na prática, a teoria é um fio condutor, um excelente fio condutor produzido pelo gênio humano. Imagine que seja como o fio de Ariadne: serve para que você não se perca ao mover-se no labirinto que é a vida social e política em que está metido com certo grau de responsabilidade condutora.
Não desanime, não, Alberto! Encare sua atuação profissional como uma aventura, pois de fato ela é. Como, de resto, a vida toda é uma aventura, por mais que andem pintando-a como um desastre, um infortúnio (em boa parte, dizem maliciosamente, porque os governos levam a que seja assim). E a pintam, a vida, assim, sabe por que, Alberto? Para em seguida oferecerem seguros, vacinas, antídotos, remédios, tratamentos etc. adquiridos, se necessário for, em módicas prestações no famoso “mercado” – aquele mesmo, cujo crescimento e fortalecimento defendem incondicionalmente, às custas da redução dos governos, sobre o cadáver do Estado do bem-estar social.
Força aí, rapaz! Junte-se aos seus/suas colegas de lutas e sonhos, para que, unidos, se fortaleçam e sigam em frente. Não deixe de participar nem de levar outros a participar das instituições do Campo de Públicas , essas grandes conquistas da nossa área de conhecimento na última década: ANEPECP, SBAP, Pró-Pública, Fenecap.
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