top of page

Cartas a um jovem gestor público - 3a.

Foto do escritor: Valdemir PiresValdemir Pires

Imagem: Wix
Imagem: Wix

Peço sua compreensão e sua paciência, Alberto: uma vez mais vou falar de leitura. Hoje, a respeito da leitura necessária para adquirir e consolidar conhecimentos específicos da sua área de atuação profissional. Tratei antes das leituras de História, que permitem compreender os fazeres coletivos que, engendrando as condições de vida em sociedade, impactam o modo de vida de todos. E tratei também das leituras literárias, cuja contribuição é desenvolver a sensibilidade individual a partir da imersão virtual em universos fictícios em que é possível “viver de aluguel” as emoções que afloram nas personagens e as situações que entre elas se criam.

 

Qualquer um poderia perguntar (mas você não o fez): por que não se optou por “ir direto ao ponto” – abordar o conhecimento e as habilidades profissionais específicas – para somente a seguir tratar de aspectos conexos e gerais? A resposta é que esta foi uma escolha deliberada, visando um efeito.  

 

Alberto, você é Alberto (assim como João é João, Maria é Maria, Frederico é Frederico), o que significa ser bem mais do que o profissional da gestão pública que atende por este nome; você é uma pessoa com múltiplas inserções na vida e na sociedade; é um indivíduo complexo, multifacetado, envolvido em numerosas relações, cada qual transformando-o em algo relacionado a uma função: filho, marido, pai, amigo, vizinho, motorista habilitado, cidadão brasileiro identificado por um passaporte, eleitor, consumidor e cliente de numerosas empresas, contribuinte do fisco nacional... e, em meio a isso tudo, profissional a serviço de um governo, dotado de conhecimentos e habilidades formais e informais reconhecidas e demandadas.  Na medida em que você se percebe como tal, consegue lidar com suas responsabilidades, obrigações e fazeres profissionais com sabedoria – mais do que com apenas conhecimentos, informações, dados; consegue relacionar-se com os demais compreendendo-os melhor, também. Tendo por referência a dimensão histórica do homem vivendo em sociedade e considerando as vicissitudes individuais originadas do modo de sentir/emocionar-se (e não apenas raciocinar/racionalizar) que afetam os comportamentos e atitudes de cada um de nós, a aplicação dos conhecimentos profissionais (teóricos, técnicos, metodológicos) amplia suas chances de sucesso, assim como este sucesso pode carregar uma qualidade que, sem sabedoria, não traria consigo.

 

Eu sei que o procedimento que adotei é arriscado (perdoe-me, novamente, por alongar esta questão): do geral para o particular, sendo que o particular é uma porta (que afinal se está desejando abrir) e o geral é um caminho. Mas que tal ver a porta em perspectiva, caminhando de olhos bem abertos pelo menos um trecho do caminho que leva a ela? Conhecendo este caminho, não poderá haver grandes surpresas ou sustos quando, ao abrir a porta, constatar-se que depois dela o caminho continua, dividindo-se em diferentes direções: é o mundo que se apresenta diante de quem, afinal, consegue abrir a porta!

 

A gestão pública consiste no manejo de numeroso conjunto de portas e comportas, a serem tanto abertas quanto fechadas, conforme a conveniência (pactuada, quando sob democracia) de cada momento, para que o caminho do bem-estar social (nem reto nem livre dos mais variados obstáculos) seja trilhado pelo maior número possível de pessoas. Essas portas e comportas não devem permanecer sempre fechadas ou abertas. Governos devem atuar tanto para proibir (fechar), como para permitir (abrir ou “deixar passar, deixar fazer” - laissez faire, laissez passer, como dizem os liberais). Do contrário os governos não precisariam existir.

 

A diferença entre uma porta e uma comporta é que a primeira é um dispositivo que abre e fecha para a passagem de algo ou alguém que irá transpor o batente depois de autorizado, enquanto a segunda lida com a passagem de algo (tipo um líquido, por exemplo) que está sempre pressionando para seguir em frente e, às vezes, o faz simplesmente arrebentando o obstáculo. Enquanto provedor de bens públicos, o governo controla comportas em que a pressão, ao invés de ser para sair, é para entrar: trata-se da pressão dos cidadãos-contribuintes para que suas necessidades públicas sejam atendidas, depois de terem ajudado a encher os cofres públicos com os recursos oriundos dos tributos (impostos, taxas, tarifas, contribuições de melhoria). As portas têm a ver com as funções governamentais disciplinantes (organização e garantia da lei e da ordem para a convivência social e funcionamento da economia); as comportas dizem respeito à ação governamental provedora (políticas públicas para oferta de bens e serviços públicos: educação, saúde, infraestrutura etc.).

 

Então, Alberto (em itálico: homem, que tem dessa condição geral uma boa compreensão), na sua condição particular de Alberto (em caracteres comuns: o gestor público durante um número de horas por dia, cinco dias por semana) você é um zelador de uma (ou mais) porta ou comporta, como acima descritas. Deve contribuir tanto para que ela exista, como para que funcione bem, o que requer certos conhecimentos e habilidades específicos. Conhecimentos sobre portas, batentes, dobradiças, fechaduras, muros e paredes (sem os quais, para que uma porta?) etc. , assim como conhecimentos sobre as distintas maneiras de construir e operar portas e comportas.

 

Se Alberto (na dimensão particular) está envolvido na gestão pública como portador de poder delegado pela sociedade (foi eleito), deve dominar o que é preciso saber para decidir quando, com que finalidade, em benefício e em prejuízo de quem construir, abrir ou fechar ou até mesmo destruir uma porta ou comporta – estes são conhecimentos políticos, que auxiliam negociações, articulações, viabilização de consensos e fazeres assemelhados. Mas se Alberto, em vez de ser um político, um decisor em nome da sociedade, ocupa um cargo na administração pública (meio através do qual o governo age), faz parte de uma carreira (concursado), então serve “ao povo” indiretamente, obedecendo, por um lado os objetivos e metas programáticos do governante do momento e, por outro, as normas e regras (mais ou menos perenes) sob as quais devem funcionar as agências governamentais. Deve dominar o “como” abrir e fechar portas e comportas, além da maneira de mantê-las sempre prontas a abrir ou fechar, cumprindo bem sua função de obstruir ou liberar a passagem. Se – terceira situação possível – Alberto foi levado para o governo por livre nomeação de um político eleito (cargo de confiança), ele deve funcionar como elo

entre a decisão de abrir/fechar a porta e o conjunto de decisões (menores mas não menos complexas) e atos/ações concretos que levam a que ela seja aberta ou fechada, materializando a decisão maior quanto a seu desejado estado de aberta ou fechada.

 

O conhecimento para embasar a decisão de abrir/fechar a porta ou comporta (e também de construí-las ou destruí-las) é eminentemente político (embora não apenas), enquanto que o conhecimento que alicerça as decisões seguintes (decisões táticas e operacionais) e as ações correspondentes é eminentemente técnico (embora não só). E, por sua vez, o conhecimento que conecta essas duas partes (decisão de abrir/fechar e viabilizadoras da abertura/fechamento de fato) tem que combinar política com técnicas. De modo que em governos e na administração pública, tudo que se decide e faz é de natureza eminentemente tecnopolítica.

 

Em qual desses “compartimentos”, que são vasos comunicantes, você atua, Alberto? As leituras, estudos, pesquisas, experiências com que você se envolve para se manter à altura de suas responsabilidades (e – por que não? – dos seus sonhos de boa sociedade) neste ambiente (ecossistema de agentes tecnopolíticos, na verdade) quais têm sido? Quais deveriam/devem ser? A resposta não é simples, mas algumas diretrizes a respeito é possível delinear.

 

Comecemos por reconhecer que, para o bem e para o mal, o conhecimento hoje acumulado e manejado pela Humanidade se tornou demasiado amplo e ramificado, a tal ponto que aquilo que, no passado, se chamava e admirava como erudição (domínio de um vasto âmbito de conhecimento por um indivíduo) hoje é uma impossibilidade – vivemos na era das especializações, na qual o que um antigo erudito dominava é, claramente, uma fração mínima do que há por conhecer. No lugar da erudição, o que um bom profissional pode conseguir é, no máximo, uma profunda visão geral de sua área de atuação, que lhe permita trafegar com segurança e discernimento entre as subáreas e áreas conexas de seu campo de atuação.

 

Então, caro Alberto, no seu caso, um gestor público, a visão geral de sua área de atuação é obtida em um campo de conhecimento multidisciplinar: Administração ou Gestão Pública, que bebe nas fontes do Direito, da Administração (originalmente de empresas), da Economia, da Sociologia, da Ciência Política, do Urbanismo etc. – e que não é, como no passado se pensou, uma subárea de Administração de Empresas, uma vez que nesta o objetivo é a maximização dos resultados em benefício do empreendedor privado (o capitalista ou o investidor/acionista), enquanto que na Administração Pública o objetivo recai na potencialização politicamente negociada dos benefícios coletivamente apropriáveis a partir do manejo do orçamento público, cujas receitas derivam do poder de império que dá capacidade de obrigar ao pagamento de tributos,  e não da troca mercantil, dependente das vendas.

 

Soou complicado, não é mesmo? Não por pedantismo do expositor, espero, mas porque o assunto é, definitivamente, propenso a complexidades e, até, a perplexidades. O que faz dele uma aventura para os que aceitam desafios intelectuais, você não acha? E, para aqueles que os aceitam com a vontade de vencê-los a serviço do sonho (utopia) de uma sociedade melhor que a atual – menos opressiva, mais igualitária, promotora de relações sociais e interpessoais mais fraternas – torna-se um admirável, um soberbo propósito ou até mesmo sentido de vida.

 

Agora, se não for para buscar este sonho nem para aceitar o desafio intelectual necessário para persegui-lo na vida real, Alberto, penso que ninguém deve querer ser gestor ou administrador público, não é verdade? Que se dedique, preferencialmente, a algo que, ao prejudicar ou não ajudar, afete menos gente do que toda uma sociedade, para a qual o bom desempenho governamental é fundamental e carece de decisores (políticos) e gestores/administradores de alta qualidade tecnopolítica.

 

É fácil, no Brasil, depois de se preparar com máxima dedicação, para ser um gestor público (não confundir com se tornar “concurseiro”), vir a sê-lo, de fato e, após isso, continuar querendo ser, face à realidade das administrações públicas nacional, estaduais e municipais, direta e indireta? A resposta é não, definitivamente, não. Mas este assunto fica para outra carta. Por ora, Alberto, o que posso lhe recomendar é perseverança e esperança (antes de desistir, como disse ter-lhe “passado pela cabeça” diante de alguns problemas e dilemas que já enfrentou) – até porque a alternativa (desistência, descrença) é muito pior, no caso de uma pessoa, como você, que tem vocação para estar onde está e fazer o que deve ser feito. Força aí, perceba que a era da globalização, proponente do Estado mínimo, parece estar chegando ao fim: de Norte a Sul, de Leste a Oeste, os senhores da guerra (militar, mesmo, e também comercial/financeira/monetária), como chefes (legítimos ou ilegítimos) de Estado, estão dando evidentes mostras de que sem este, e forte, nenhum país será respeitado, mas, pelo contrário, correrá o risco de ser riscado do mapa, à revelia dos interesses e contribuições, e até da sobrevivência, de seu povo.

 

Aqui despeço-me, desta vez sem oferecer sugestões de leitura, não por falta de uma lista delas (aliás imensa), mas porque os currículos dos cursos do Campo de Públicas (Administração Pública, Gestão Pública, Políticas Públicas, Gestão de Políticas Públicas, Gestão Social e Ciências do Estado), amplamente divulgados na internet, as organizam sob os títulos de suas disciplinas, que variam muito caso a caso, levando à constatação da imensa diversidade de abordagens típica da área de conhecimento no país.

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page