
Caro Alberto, foi com grande alegria que li, na sua resposta à minha carta anterior, o relato de como você adquiriu gosto pela leitura, exatamente por influência de um professor de História do cursinho preparatório para o vestibular. Que tenha cursado uma disciplina optativa em que leu com proveito Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, Milton Santos e Raymundo Faoro foi uma notícia que me fez vibrar: estou certo de que, com as primeiras leituras que lhe indiquei na primeira carta, enriquecerá sobremaneira sua noção do que somos (ou do que temos nos tornado, melhor dizer), como país e Nação.
Vejo que para você não preciso falar sobre a importância da leitura, insistindo para que reserve tempo a ela na sua vida. Por mais que existam mil e uma maneiras de aprender, ninguém pode negar que foi graças a esta habilidade intelectual básica, grande (se não a maior) invenção da humanidade, que chegamos até aqui, social, política, cultural, científica e tecnologicamente falando. A cultura letrada parece-me a construção coletiva que melhor expressa a ideia de humano.
Digo humano tanto no sentido racional como no sentido emocional. Sim, porque além da leitura científica e filosófica, inventamos também a escrita (e correspondente leitura) literária e poética. Enquanto as leituras científica e filosófica nos desvendam e revelam enquanto seres racionais (a primeira, inclusive, adotando métodos que procuram isolar de seu objeto – mesmo quando ele é o homem – todo e qualquer juízo de valor), as leituras literárias e poéticas cuidam de espiar por aquele buraco da fechadura através do qual é possível observar, ainda que um tanto precariamente, os nossos sentimentos, as nossas emoções, o âmago do que (alma? espírito?) nos diferencia de tudo o mais existente na natureza.
E, veja, se são as emoções e os sentimentos as “variáveis” que nos tornam únicos no mundo (no universo, talvez), não incorre em imperdoável erro aquele que pretende gerir os assuntos coletivos, públicos, estatais, governamentais pouco sabendo o que são e como se manifestam as emoções e sentimentos? Um sujeito que não tenha uma ideia minimamente clara das incertezas, ambiguidades, contradições, imponderabilidades, medos, ansiedades, desejos, frustrações, preconceitos etc. que povoam a mente (e a alma?) humana, e que se paute por uma concepção de homem como, por exemplo, mero agente econômico racional ou puro ator político com interesses definidos (ambos com objetivos, metas e estratégias claras fundamentando suas ações), pode esse sujeito avaliar como adequada sua pretensa contribuição para o bem comum e o interesse geral, a partir de seu cargo, função ou atividade em alguma esfera do poder público? Pois é de gente assim, despreparada quanto ao que é genuinamente humano, que tantas vezes estão povoadas agências governamentais que insistem em planejamento, implementação, execução e avaliação de políticas públicas no sentido estritamente técnico dos termos; ainda que primem pelo discurso e até pela prática de metodologias participativas, democráticas, dialógicas, essa gente desconsidera o fundamental. Não por maldade, mas por falta de percepção profunda. E esta, que em geral se obtém por meio da prática, pode ser acelerada pelas leituras literárias. A literatura permite ampliar o conhecimento dos outros e de nós mesmos, no que tange ao que está além do racional, como nenhum outro artefato do saber. E só ela, no campo da escrita-leitura, proporciona essa fortuna, enquanto arte mediada pela linguagem escrita.
Arte! Eis a questão. Sem ela, o homem se enrijece, petrifica, embrutece. E nessa condição, de bruto, a ciência, a tecnologia e a própria Razão, em suas mãos, se tornam perigosíssimas armas. Até mesmo a arte de governar termina servindo a fins que se distanciam do que convém a uma boa sociedade. Sem a noção do belo, como conceber uma noção de bom?
Não sei, Alberto, se estou conseguindo me fazer entender. Por favor, reflita e me diga. De qualquer maneira, experimente ler pelo menos uma obra literária por mês, para ver como isso melhora a compreensão que você passa a ter de si mesmo, dos outros e do mundo dos homens. Imagine os personagens que você vai conhecendo, por meio da leitura, participando – agindo e reagindo – das decisões e ações que você tem que tomar e encetar na sua condição de gestor público. Faça disso algo que lhe permita viver mais intensamente em meio ao “espetáculo do mundo”. Você que já aprendeu a entender a História como a “biografia” do mundo.
Aceita três sugestões de obras literárias magníficas, para começar (ou para continuar, caso você já seja um leitor literário)? Se já tiver lido alguma delas, pode me pedir uma quarta indicação.
Para aprofundar a percepção sobre o comportamento daqueles que fazem de tudo para parecer o que não são e precisam muito disso para se sentir vivendo (e são tantos, não é mesmo, Alberto?), leia Almas mortas, de Nicolai Gogol. Para adquirir um olhar heterodoxo e maravilhoso sobre a cidade (assentamento por excelência da vida moderna e objeto primeiro e último da gestão pública, por ser o local onde somos o que nos tornamos), conheça As cidades invisíveis, de Italo Calvino – você nunca mais enxergará o fenômeno urbano como um burocrata ou um tecnocrata. Por último, Milan Kundera, A identidade. Nada direi sobre este, a não ser que tem a ver com nossa limitação para compreender o outro, por mais próximo que ele esteja. Leia, depois me conte que “movimento de alma” lhe provocou.
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