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Cartas a um jovem gestor público – 12ª.


Imagem: Wix
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Se alguém algum dia ler essas minhas cartas a você, Alberto, vai achar que exagero na boa avaliação que faço de sua pessoa e de sua conduta. Não é disso – exagero – que se trata, porém. Sabe aquela noção/categoria de tipos ideais formulada pelo Max Weber? Então, eu avalio que você é uma pessoa que se aproxima do tipo ideal de gestor público: competente (bom técnico com adequada visão política), comprometido (dotado de sentido de missão), atuante/diligente (gente que faz), permanentemente buscando esclarecimento e aperfeiçoamento. (Se as provas de concursos públicos fossem capazes de selecionar garantindo essas qualidades – ou seja, aprovando somente os tipos ideais de servidores públicos – imagina o que seriam os governos!)

 

Não é à toa que em sua última carta você me pergunta o que considero necessário a um gestor público para se manter relevante na sua profissão, diante da “competição” em andamento com as máquinas (informatização de rotinas, atendimentos via canais virtuais, aproveitamento da inteligência artificial). De fato, tenho muitas dúvidas quanto a qual deva ser a melhor resposta a lhe dar. Estamos todos mergulhados em um processo de transformação profunda, sem saber aonde ele vai nos levar, quais serão exatamente suas consequências positivas e negativas. Mas vou esboçar uma resposta, que você deve considerar apenas como subsídio para juntos chegarmos a um melhor “desenho”.

 

Penso que as “máquinas inteligentes” e mais rápidas que nós, humanos, resolvem muito bem tudo que pode ser rotinizado, principalmente quando a rotinização se beneficia adicionalmente da disponibilidade de dados a serem “puxados” nos passos da rotina em questão. Um bom exemplo: o preenchimento da declaração de ajuste anual do imposto de renda. Os dados de cada contribuinte estão nas bases da Secretaria da Receita Federal (graças aos procedimentos declaratórios informatizados) e existe um formulário padrão de fácil acesso pela internet que pode ser preenchido automaticamente com esses dados – isso, então, permite uma pré-declaração feita por máquina, bastando em seguida acrescentar detalhes que possam ter escapado. O contribuinte não precisa mais realizar dedicar-se à desgastante elaboração manual da declaração de ajuste (por sua vez, já não mais em papel há anos), preocupando-se o ano inteiro em manter o arquivo de documentos necessários aos lançamentos. Sempre que o governo está diante de uma situação parecida com essa, os investimentos na rotinização devem ser feitos. Nunca sem perder de vista que a eficiência microeconômica que o contribuinte e o fisco estão ampliando impacta macroeconomicamente o nível de emprego futuro: menos servidores serão necessários na Receita Federal, menos contadores serão contratados para fazer a declaração de ajuste anual que a maioria não sabe ou não quer fazer. É assim, nenhuma solução tecnológica é apenas positiva, o que acontece é que somente lado positivo de sua adoção é imediatamente percebido. Se a soma dos ganhos microeconômicos (individuais) suplanta, fica aquém ou iguala as perdas macroeconômicas (coletivas), não se pode saber de imediato, pois ela se espraia do presente ao futuro, imediato e longínquo.

 

Quanto ao uso de máquinas para atendimento/interação com os cidadãos-eleitores-contribuintes, o resultado não é tão claramente positivo quanto no caso anterior (rotinização). Para entender isso, experimente submeter-se (constranger-se, eu diria) ao atendimento de uma máquina para, por exemplo, solucionar um problema no seu serviço de energia elétrica ou telefonia. Verá que a máquina, na verdade, se presta a conduzir bem as situações-padrão, entre as quais pode não estar a sua. Assim sendo, você terá que voltar no tempo, tecnologicamente, e travar contato telefônico com um ser humano. O qual, por sua vez, o atenderá seguindo procedimentos semelhantes aos estabelecidos pela máquina, pois no computador em que ele está trabalhando é os dados e formulários são os mesmos que mencionada máquina utiliza. Para sair dessa rotina, você terá que travar uma batalha campal. Batalha ainda mais renhida do que seria “normal” pelo fato de que as empresas, agora dotadas de máquinas para lidar com o problema que você está procurando solucionar, contrata muito menos gente, que custa caro demais e não é tão dócil quanto as máquinas. Você tentará o tempo todo chegar a alguém que, como gente, dialogue e encaminhe criativamente – supervisor, gerente e, esgotados os meios e a paciência, a ouvidoria; como último recurso, a agência reguladora do serviço público de telefonia ou energia elétrica fornecido por empresa privada. Com sorte, seu problema será solucionado, um dia desses... Estamos longe, Alberto, do dia em que máquinas substituirão pessoas em situações como esta que acabo de mostrar. Se gente é problema em tantos casos a resolver, em outros, também não poucos, gente é a melhor solução, quando não a única.

 

Para fazer coisas, todavia, nada como as máquinas, os robôs programáveis. Basta ver uma linha de produção de veículos automotores, por exemplo: a fábrica trabalha praticamente sozinha, com uma rapidez e perfeição para além das possibilidades do corpo humano. Mas, note bem, fazer não está no centro do que é, hoje, bem governar. Bem governar é, fundamentalmente, compreender, diagnosticar, negociar, articular, viabilizar institucionalmente, de olhos voltados para o interesse coletivo, o bem-estar social, a coisa pública. Se assim é, o bom gestor público é aquele cujo preparo combina duas habilidades fundamentais: entender e sentir.

 

Nos níveis operacionais das atividades governamentais, o fazer se sobrepõe ao entender e sentir. Neste nível, são “as mãos” (figura relacionada aos procedimentos que implicam atuar diretamente sobre os elementos, levando-os de um estado concreto a outro: um enfermeiro que aplica uma injeção num paciente do hospital público, por exemplo) que devem oferecer a excelência “visível” (mesmo sabendo que sem o entender e sentir, a mão tende a falhar). Cá fico imaginando o dia em que injeções serão infalivelmente aplicadas por uma máquina, sendo que hoje já existe equipamento que localiza as veia sem falha para aplicações endovenosas.

 

Agora, nos níveis decisórios, negociais e encaminhatórios, a invisível (mas notável) capacidade de entender e sentir é que fará toda a diferença. Entram em cena, agora, mente e coração como principais locus originários do bem governar. Não creio que máquinas possam substituir os humanos neste âmbito, principalmente quando mente e coração devem funcionar concatenados: razão e emoção se equilibrando; capacidade analítica e raciocínio (entendimento), bem temperados por sensibilidade (sentimento); valores e situações circunstanciais (antropológicas, por exemplo) tendo que ser considerados.

 

Por fim, Alberto, eu diria até mesmo que bem governar, neste momento histórico de hipertecnologização da vida que estamos atravessando, passa, fundamentalmente, por encontrar uma maneira coletiva – que requer necessariamente intervenção estatal e atuação governamental em nossas sociedades massivas – de lidar com as máquinas, de modo que ganhos microeconômicos/individuais (via aumento da produtividade sem limite) sejam desestimulados e freados quando ou até o ponto em que perdas macroeconômicas/coletivas lhe sejam superiores, como é o caso, por exemplo, nos assuntos ambientais: a lucratividade com tecnologias devastadoras dos recursos naturais apresenta objetivo risco de levar ao fim da vida no planeta. Senão bons governos, capazes de zelar pelo futuro da espécie em seus locais de atuação, quem impedirá que a inconcebível caminhada rumo ao abismo chegue ao seu horroroso destino final?  

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