top of page

Cartas a um jovem gestor público - 1a.



Imagem: Wix
Imagem: Wix

Caro Alberto, há pouco fiquei sabendo que, finalmente – resultado de sua competência e, sobretudo, de sua persistência –, você assumiu um cargo na administração pública (municipal, estadual ou federal?). Fiquei com a impressão de que o obteve por via eleitoral, mas não pude ter certeza; talvez tenha sido aprovado em um concurso público, talvez esteja ocupando um cargo de confiança (boa escolha, a do seu chefe!), talvez tenha encontrado a chave para abrir a emperrada porta para a assessoria ou a consultoria independente e de qualidade no setor público – não sei. Mas de fato não importa. O que é relevante é que depois de anos e anos estudando e pesquisando a respeito dos numerosos e complexos problemas e dilemas da coisa, do interesse e do bem públicos, parece que doravante você vai poder fazer uso de todo o conhecimento acumulado para, enfim, contribuir no processo de construção de bons governos, cada dia mais necessários, não obstante toda gritaria contra a intervenção do estado na economia.

 

Lembro-me de você quando estudante, orgulhoso de ser xará de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), alguém que dedicou a vida à produção teórica, de olho no mundo sem perder de vista seu próprio lugar num país da América do Sul, procurando compreender ambos e, ainda mais, a relação entre o local e o global, ansioso por um Brasil com seu lugar no concerto das nações, desenvolvido sem deixar de lado a preocupação com a justiça social. Que este orgulho signifique mais do que vaidade, em sua vida: que se torne um compromisso.

 

Compromisso teórico e empírico. Que leve você a sempre refletir e agir, oxalá liderando (como aliás fazia tão bem no centro acadêmico), não como tantos burocratas insensíveis deste país, alguns até menos do que isso (focados apenas em um emprego estável relativamente bem remunerado), mas como um agente tecnopoliticamente capacitado, que atua com compromisso e competência. Competência que você percebe marcada profundamente pela indissociabilidade entre política e gestão quando voltada para o funcionamento dos poderes públicos e dos órgão da administração pública.

 

Competência que você levou algum tempo, na graduação, para perceber que exigia uma boa dose de compreensão da História do Brasil. Mas que, depois que percebeu isso, soube, para sempre, que conhecer em profundidade a respeito de metodologias, técnicas e instrumentos de gestão de políticas públicas, de elaboração e execução orçamentária, de liderança e empreendedorismo no setor público, de modelos teórico-quantitativos aplicados a soluções governamentais etc. não leva muito longe quando se tenta aplicar teorias (por mais sofisticadas que sejam) sem considerar a realidade local, com sua historicidade, contradições, potenciais e limitações.

 

Espero que toda esta bagagem teórica e histórica, de que você é portador (e disso dou meu testemunho) comece agora a fazer sentido na sua vida pessoal e familiar, transbordando para a vida social da comunidade em que você está atuando (quando puder, me fale exatamente onde está, porque se passar por aí, tomaremos juntos um bom café com prosa – por minha conta).

 

Desejo que nunca se esqueça, nas decisões e empreendimentos de que participe, não apenas dos aprendizados obtidos nos manuais técnicos das disciplinas do seu curso do Campo de Públicas, mas também das outras leituras, não diretamente relacionadas à gestão pública, mas reveladoras de facetas relevantes do ambiente socioeconômico, político e cultural, historicamente construído, em que a gestão pública é levada a efeito, pois sem essa noção histórico-cultural, não tenha dúvida: por mais brilhante que você seja e por mais que percebam e reconheçam isso, sua luz, em vez de se espraiar pelo mundo e ajudar a transformá-lo, baterá no muro da incompreensão da realidade à sua volta; e então você acabará se frustrando e se tornando mais um repetidor do bordão: “Esses burros não me compreendem. Que fiquem aí, empacados. Eu vou cuidar da minha vida.”

 

Não pare de estudar. Continue se aprofundando no conhecimento técnico específico da sua área. Mas não abandone as leituras de História, Geral e do Brasil. Entre essas leituras, inclua autores de diferentes abordagens, desde os que se focam nas grandes narrativas até aqueles que se dedicam a desvendar aspectos da vida quotidiana – cada uma dessas maneiras de ver revela coisas que a outra não é capaz de revelar. Só para dar um exemplo (que pode ser considerado sugestão), experimente ler (nas horas vagas, até como lazer, pois os textos são saborosos), nessa ordem, os seguintes livros (abaixo), e então entenderá plenamente onde eu quis chegar ao lhe escrever esta primeira carta.


Caso queira, posso lhe enviar a próxima carta, que penso ainda escrever, sobre a importância de não permitir que seus olhos, ao ver uma árvore, nela perceba apenas uma árvore. Ou, mais especificamente, que sua capacidade de adentar a realidade do mundo, seja tal que lhe permita entender, por exemplo, que fazer orçamento é escrever romance, como argumentei alhures (aqui).


Leituras recomendadas para fugir à afirmação verdadeira de que: "O Brazil não conhece o Brasil"


História da vida privada no Brasil. Coleção (4 volumes) organizada por Fernando A. Novais, publicada pela Companhia das Letras em 1997.


Brasil: um século de transformações. Coletânea organizada por Ignacy Sachs, Jorge Wilheim e Paulo Sérgio Pinheiro, publicada pela Companhia das Letras em 2001.

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page