As experiências existenciais e o mesoscópio
- Valdemir Pires
- 2 de jul.
- 5 min de leitura

Modo de produção, modo de vida, jeito de viver: conceitos que, relacionados entre si, permitem entender a existência no âmbito meso, ou seja, entre o micro e o macro. Enquanto modo de produção e modo de vida dizem respeito ao macro (as relações sociais determinantes das possibilidades existenciais dos indivíduos), jeito de viver tem a ver com a manifestação concreta, quotidiana da vida individual, consideradas as relações interpessoais nela envolvidas.
Quando se considera apenas modo de produção e modo de vida, o indivíduo se assemelha a uma marionete das forças macro (resultante coletiva) da História, ficando a impressão de que ele não faz história, sendo uma espécie de subproduto da História. Por outro lado, quando modo de produção e modo de vida são desconsiderados, o indivíduo é reificado; mas trata-se de um rei com trono, mas sem reino: o que ele faz o satisfaz, mas não repercute no macro – ele fica preso no micro.
Na realidade, o indivíduo e o coletivo (a biografia e a História) se emaranham no nível meso. A realidade não existe só no micro ou só no macro – ela ocorre no emaranhado entre micro e macro, articulada pelo meso. Os conceitos de modo de vida e jeito de viver se só fazem sentido partindo-se deste fato. E é este ponto de partida que os tornam reveladores de aspectos da existência (coletiva e individual) que abordagens macro e micro isoladas não conseguem alcançar.
Quando se olha para o macro (telescópio), modo de vida vai além de modo de produção ao considerar a vida individual não a partir da condição “seca” de classe, mas da condição individual dentro de uma classe, condição esta que não faz de ninguém simplesmente burguês ou operário, mas variantes concretas (em geral intermediárias) entre um e outro desses sujeitos-tipo.
Quando se olha para o micro (microscópio) parte-se do indivíduo, a partir do seu jeito quotidiano de viver – é aí que se localiza a vida concreta, vivida, experienciada. Mas o olhar fica embaçado no que tange ao macro: ganha-se em realismo local/individual e perde-se em realismo geral/coletivo.
É preciso, pois, para não perder de um lado enquanto se ganha de outro, utilize um potencializador do olhar (mental) que não existe: mesoscópio, cujas lentes são ajustadas de tal modo que fazem convergir micro e macro para permitir que se veja a realidade de um terceiro modo.
Como funciona o mesoscópio. Ele é uma “lente” que age entre o ampliar e o reduzir, entre o afastar e o aproximar. Serve para focalizar a essência de uma vida humana sem desfocar totalmente os acidentes que necessariamente a afetam. Em outras palavras, tenta identificar o “centro de gravidade” de uma experiência existencial específica. Exemplos ajudam a esclarecer a ideia.
João é dono de uma empresa de grande porte líder de mercado em seu segmento. Pelo recorte de modo de produção, é um capitalista/burguês. Seu modo de vida, entretanto, não é a de um tipo puro desta classe. De origem humilde, ascendeu aproveitando uma oportunidade de inovação a partir de sua experiência profissional precedente. Isso influenciou sua mentalidade, seu comportamento e suas atitudes. Foi capaz de vacinar-se contra a ideologia do novo rico. Quem com ele trava relações fora do ambiente empresarial o toma facilmente como alguém de classe média, que não se deslumbra com o tanto que se coloca à sua disposição em termos de consumo; tampouco identifica nele as manifestações dos orgulhosos self-made men. Embora possa ser uma agulha no palheiro, é um exemplo de modo de vida identificável pelo mesoscópio, digno de entrar na lista de tipos possíveis de materialização concreta. Seu jeito de viver não é o do empregado de indústria de sua juventude, nem o do empresário bem-sucedido de sua maturidade. Tendo conquistado liberdade financeira (condição de bancar suas despesas sem ter que destinar tempo, antes, empreendendo ou trabalhando, para obter o dinheiro com que comprar o que necessita/deseja) e, portanto, podendo viver tal como deseja, escolheu uma existência centrada na família e na filantropia. Gastando pouco tempo para coordenar a equipe de profissionais que, de fato, põe em movimento seu capital, destina a maior parte das horas de seus dias a conviver e colaborar com mulher e três filhos, pai e mãe, três irmãos e cinco sobrinhos. Desempenha papel relevante em entidades assistenciais e contribui significativamente no traçado e implementação de políticas sociais em sua cidade, assim como em algumas em nível federal. Seus movimentos e relacionamentos quotidianos dão provas de que seu jeito de viver é o de um empreendedor social, pois o centro de gravidade de sua experiência existencial o levou de um jeito de viver típico de empregado industrial para o de um empregador industrial e, por fim, ao de um militante de causas sociais (sem recorte político-ideológico) que prima pela “ordem familiar”, buscando fortalecer na sociedade as condições para evitar a desagregação desta célula básica da estrutura social (ideia mobilizadora de seu jeito atual de viver).
O centro de gravidade do jeito de viver de José é a busca de autoafirmação e prazer na sua condição de homossexual, objeto de preconceito e não raro de ataques não apenas verbais. Também empresário de sucesso, mas de negócio herdado da família, é solteiro. Conduzir a holding com filiais em vários países lhe toma boa parte da vida e ele o faz com mão de ferro e gosto pela visibilidade midiática. Mover-se sem restrições pelo mundo afora é o que lhe faz bem. Geralmente vai a negócios, mas estes lhes tomam, em geral, um quarto do tempo, apenas. Entre negociar (para sobreviver) e explorar aspectos da vida que lhe agradam (viver), José encontrou o lugar de sua existência. O macroscópio (recorte social, de modo de produção), o identifica como capitalista; o microscópio (recorte existencial, de modo de vida) o considera um milionário típico, colocando a riqueza a serviço do próprio prazer; o mesoscópio capta um dado que os dois instrumentos não permitem ver: um jeito de viver que, conscientemente ou não, busca poder e ostentação como escudos contra a discriminação.
Desses dois exemplos pode-se derivar a noção de mesoscópio como um “aparelho” com lentes especiais, que não se limitam a focar o macro (condição social, com seus jogos de interesses) e o micro (condição individual, com seus problemas, dilemas e, também, enigmas): um “aparelho” mental/intelectual/sentimental que busca ir além, não obstante todas as dificuldades para isso. É neste além do micro e do macro que o mistério da vida se esconde, na condição de enigma de cada um face aos demais (sociedade) e ao mundo (natureza). Enigma tão profundamente pessoal que nem biografia nem História podem decifrar por completo; enigma cuja essência cada um carrega do nascimento à morte, levando consigo para o túmulo; enigma tão profundo quanto aquele que diz respeito ao sentido da vida que se destina inexoravelmente à morte.
Outros exemplos que poderiam ser apresentados, de gente pobre e de pessoas de classe média (outros dois modos de vida, além daquele dos ricos de que João e José são representantes), pouco acrescentariam aos argumentos. Mesmo assim, em outra ocasião serão explorados.
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