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  • Foto do escritorValdemir Pires

A rotina e a insignificância




No dia 16/09/2024, a jornalista Beatriz Vicentini, minha querida ex-colega de trabalho na desaparecida Unimep, publicou no seu Facebook um texto sobre a rotina. Bela reflexão, como tantas outras dela, ali e no Diário do Engenho. Sua presença na rede social do Mark Elliot Zuckerberg, assim como a do Tito Kehl, a do José Lima Júnior e a do Alê Bragion, fazem valer o sacrifício de me manter também ali, suportando postagens narcisistas e de tantos juízes do mundo a partir de suas toscas visões de mundo. Essas mencionadas pessoas, juntamente com Carlos ABC, Romualdo Sarcedo (o Roma), Newman Simões e Josiane Maria de Souza Pessoa, fazem-me acreditar que Piracicaba tem um solo que permite, sim, germinar e cultivar talentos, pessoas para além do pragmatismo diário e vacinadas contra o reacionarismo reinante.

 

Em sua postagem no Facebook, Bia aborda a rotina como uma necessidade para evitar a sensação de desimportância. Abordagem bem interessante! Porque a rotina é mais comumente encarada de duas outras maneiras. Numa delas, como forma de otimizar fazeres, principalmente produtivos, coisa que o capitalismo consagrou sob famosa percepção de Adam Smith: a produtividade aumenta se um trabalhador se dedica à rotina de enrolar o arame para fazer o alfinete, enquanto outro se aprimora na rotina de fabricar a cabeça prendedora, um terceiro juntando as partes, evitando-se que todo o alfinete seja obra de um único artesão; recomendação que Frederick Winslow Taylor enfatizou, fazendo ver que assim são economizados movimentos – resultando na imagem perversa do “homem cavalo” (que repete movimentos sem pensar, sob comando de outro, que pensa) e, no cinema, nas mãos de Charles Chaplin, na antológica cena do operário que continua fazendo, com mãos e braços, movimentos de aperto de parafusos, mesmo depois de já ter deixado a fábrica, onde passou o dia todo girando as chaves.

 

A segunda noção corrente de rotina a toma como afronta à liberdade e, portanto, indesejável, sendo a causa, muitas vezes, de desalento: a rotina do lar acaba com o casamento ou, no mínimo, faz perder a graça da vida a dois, pensam alguns (não poucos); a rotina de treinamentos e preparação desmotiva nas pessoas o desejo de se tornarem virtuoses nas artes ou nos esportes, e assim por diante. Rotina se associa a perseverança e disciplina, atributos nada encontradiços, que custam caro.

 

No fundo, no fundo, lá no âmago, mesmo, como elemento característico do ser humano desde os primórdios até o fim dos tempos (ou, no mínimo, até o fim da espécie), a rotina é uma luta contra a mudança. Em busca de permanecer, mesmo sabendo que desaparecerá, morrerá, o Homem organiza-se, no tempo e no espaço, procurando repetições ou ciclos recorrentes que o confirmem, até mesmo depois da morte.

 

A ideia de Paraíso está ligada à noção de rotina. A eternidade se confunde com ela, de certa forma: a rotina de viver para sempre, sem dores e transtornos a perturbarem a bem-aventurança contínua. As horas canônicas da Igreja Católica estabelecem uma rotina para a relação diária com Deus, para que não se perca a ligação entre Céu e Terra; a oração numa determinada hora, voltando os olhos para um determinado ponto cardeal, é algo parecido no islamismo.

 

Na Antiguidade, os egípcios aceitavam melhor a rotina do que os sumérios e babilônios, isto porque o Nilo, rio dos primeiros, tinha um regime de águas que parecia um relógio (para não dizer que era, de fato, um cronômetro), enquanto o Tigre e o Eufrates, o rio dos segundos, eram dados ao “hábito” dos dilúvios inescrutáveis.

 

A rotina, como tentativa de fazer com que se repitam os acontecimentos desejáveis e sejam repelidos os indesejáveis, na vida individual ou coletiva, é uma forma de lidar com o tempo de modo a crer na possibilidade de controlar, pouco que seja, a mudança inexorável, a última das quais é a morte. Assim, por mais sensação de importância que ela possa ilusoriamente dar a um indivíduo, ou até mesmo a um império, sonhando com a perpetuação, não passa de tênue véu, retirado o qual, percebe-se que além de finitos, somos todos insignificantes. Por isso, melhor aprender a amar (não apenas aceitar) a insignificância, como convidou Milan Kundera em seu A festa da insignificância (trad. de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 134 p.). E se o conselho literário contemporâneo não bastar, que se recorra ao Eclesiastes. Se ambos forem insuficientes, tudo bem: cada um deve saber a dor e a delícia de ser o que é, e no mundo há (ou deveria haver) lugar e sol para todos, assim como para qualquer tipo de filosofia ou crença.

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6 Comments

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Josiane Maria de Souza
Josiane Maria de Souza
Sep 21

Belo texto e excelente indicação de livro. Grata por me mencionar e ser tão generoso comigo. Você sempre atuando para divulgar livros e a leitura é um grande alento nos tempos que vivemos. Abraços..

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Beatriz Elias
Beatriz Elias
Sep 20

Leia-se, no comentário abaixo, Beatriz Vicentini - o Google pelo visto não atualizou a mudança do sobrenome.

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Beatriz Elias
Beatriz Elias
Sep 20

Ah ! Valdemir, me senti sendo olhada como muito mais do que sou. Mas me alegra muito estar entre aqueles que você elenca como o grupo que vai além do pragmatismo diário. Vamos juntos tentando fazer da palavra e da linguagem algo que acrescente, pelo menos para fazer pensar um pouco mais fora da caixinha. E obrigada mesmo pelas considerações sobre meus escritos. Vou continuar insistindo e tentando... Abraço

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joselimajunior22
Sep 16
Rated 5 out of 5 stars.

Querido Valdemir.

Figurar entre colegas tão especiais, e ainda através do seu carinhoso escrito, me tirou de uma "segundona" rotineira. Colhi o dia!!!

Com gratidão, meu abraço.

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labkehl
Sep 16

Excelente artigo!

Mas faço uma ressalva, quanto ao Paraíso (que é na verdade uma etapa intermediária, antes do Reino): é que, sendo Deus infinito, ele exclui automaticamente toda e qualquer possibilidade de repetição. Ele é infinitamente criativo, por isso não existe monotonia no seu Reino, que, como foi dito, possui "muitas moradas", que jamais esgotam a criação...

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Valdemir Pires
Valdemir Pires
Sep 16
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Agradeço o esclarecimento! Abraço!

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