
Na pequena cidade, num dia de verão quentíssimo, em seu gabinete, espartano por opção, o prefeito recebeu de seu assessor financeiro o conjunto de relatórios do trimestre, um calhamaço, e lhe perguntou:
-- Como vão as contas?
E recebeu como resposta:
-- Desta vez acho que melhoramos um pouco, para evitar encrencas com o Tribunal de Contas. Mas ainda não estamos totalmente tranquilos, faltando três meses para encerrar o exercício.
O prefeito percebeu que não daria para ir além daquilo, no pouco tempo de que dispunha para o assunto, uma porção de gente esperando lá fora para entrar e, via de regra, apresentar-lhe novas reivindicações ou reclamações.
Terminado o exaustivo dia, agora menos quente, com uma reunião à base de magro café com a sua bancada minoritária de vereadores, às nove e meia da noite, preocupada com as dificuldades para aprovar novos créditos adicionais para gastos com saúde e educação, o prefeito foi para casa. Em vão tentando esquecer os problemas com o orçamento e com o caixa: “Não é possível que não consigamos saber o que fazemos quando lidamos com o dinheiro da prefeitura! Que raios de contabilidade é essa, que eu tenho, que informa ao tribunal de contas tudo o que ele exige, e a mim, deixa no escuro para lidar quotidianamente com as finanças municipais?”
À noite sonhou, um sonho bom. Nele, havia conseguido contratar um senhor e uma moça muito competentes para, finalmente, auxiliá-lo na condução das finanças da prefeitura. O homem passou a cuidar das dotações orçamentárias; e a menina, das receitas e despesas. Sempre dialogando entre si, para evitar a colisão entre autorizações dos vereadores para gastar (as dotações) e o dinheiro em caixa. Sem que o prefeito lhes perguntasse, informavam-no, em reuniões quinzenais, a respeito de números úteis, sem jogar, indiferentes, o calhamaço contábil nas mãos.
Começava o experiente senhor, a cada reunião:
-- Fizemos as alterações orçamentárias permitidas pelos 20% da LDO utilizando o superávit financeiro do ano passado, e preparamos o projeto de lei pedindo suplementação para conseguir resolver o restante, com base em anulações de gastos que não conseguiremos realizar porque a receita não irá permitir. A lista dos gastos cancelados está aqui, para que o senhor possa conversar com as respectivas secretarias, para ver se conseguem absorver o impacto dos cortes e administrar as consequências políticas. Depois de suas negociações, voltaremos à carga, cancelando o que foi possível negociar e buscando novas alternativas, se for o caso. Em quinze dias precisamos enviar o projeto de lei.
A nova funcionária, por sua vez, dizia:
-- A receita está dentro do esperado, pequena quebra no IPTU, mais que compensada pelo ICMS. Empenhamos, ou seja, autorizamos gastos um pouco acima da receita, mas nos dois últimos meses tínhamos empenhado menos, de modo que não estamos sob tendência de desequilíbrio. Gastos com educação, saúde e folha de pagamentos dentro de pisos e teto.
Com o tempo o prefeito foi se familiarizando com a linguagem e a lógica da coisa, sabendo que não tinha mais que se sentar por longo tempo em sua casa, no meio das noites, para tentar decifrar aqueles malditos relatórios que antes recebia com a implícita recomendação: “Se vire, aí!”
E então o bom prefeito passou a saber regularmente quanto entrava de dinheiro na prefeitura, vindo de que fontes; quanto e em que estava gastando; se a receita estava ou sendo suficiente para os gasto ou a percentagem de defasagem, quando ocorria; se as despesas estavam indo na direção certa dos objetivos de seu plano de governo; se o limite com pessoal estava sendo respeitado; se o mínimo com educação e saúde estavam sendo gastos; se as dotações orçamentárias estavam sendo monitoradas junto à Câmara de Vereadores de modo a permitir a realização dos gastos necessários.
Dessa experiência decorreu a percepção de que um prefeito não deve confrontar o Tribunal de Contas em suas exigências de controle externo, mas também a de que o cabeça do Poder Executivo não pode abrir mão de ter para si informações orçamentárias e financeiras que lhe permitam, quotidianamente, bem gerir as finanças municipais, entendendo bem gerir como fazê-lo perseguindo equilíbrio fiscal, mas também a realização das metas do plano de governo.
O bom prefeito se deu conta de que a novidade trazida pelos seus novos assessores era um foco alternativo sobre os números das contas públicas, o qual era possível somente porque trabalhavam com uma espécie de “contabilidade paralela” (planilhas e gráficos que os sistemas contábeis contratados não lhe davam) àquela ordinariamente praticada para satisfazer à gula por relatórios vindas de outras fontes que não a da boa condução orçamentária e financeira visando realizações para a cidade, com base nos recursos disponíveis.
Bem... Quem leu até aqui sabe que ninguém sonha assim, tão tecnicamente. Que não existe bom prefeito, por melhor que seja, capaz de receber uma iluminação dessas enquanto dorme. Sabe que o mais comum é o prefeito, bom ou ruim, se afastar, durante a vigília, de assuntos tão espinhosos quanto orçamento, finanças, contabilidade, enfrentando, por isso, muitas vezes, as consequências que são as penalidades previstas nos sistemas de controle externo. É sabido, ademais, que um bom prefeito como o desta crônica, é coisa rara.
Então, fica aqui o cronista, sonhando acordado que, um dia, possa aparecer, por aí, um prefeito que -- não em sonho, mas mediante diligente trabalho junto a bons técnicos que possa trazer para junto de si – descubra que precisa se rebelar contra um evoluir, sem fim, de sistemas, regras, processos, relatórios etc. que roubam todo o tempo de sua equipe, sem ter como contrapartida melhorias na capacidade de gestão orçamentária e financeira. E que esse prefeito precursor traga, em seu coração benevolente e ardente diante da coisa pública, a imensa vontade política de urdir uma verdadeira revolução desmanteladora da desconfiança contra ele e seus pares na condução das finanças públicas; revolução a favor de meios técnicos e tecnológicos adequados para que possa nutrir seu governo e de seus pares de dados, informações e análises básicos para bem decidir quanto gastar, no que gastar, quando gastar, de olho na oferta das políticas públicas de que a sua cidade necessita. E que esse prefeito perceba que sozinho não fará revolução alguma, que será necessário todo um novo municipalismo (que ele pode liderar), calcado não na simples grita por mais recursos (ainda que esta continue necessária), mas pela capacitação de equipes municipais para que as prefeituras funcionem de modo a maximizar o uso dos recursos que a sociedade coloca em seus cofres, com grande sacrifício, tendo em vista que os mais onerados com tributos no Brasil são os pobres.
Sonhar não custa nada. Contar um sonho, custa apenas um esforço. E pode ser que dê resultado. Com pode ser que não dê. Na dúvida, sonhar e contar sonhos é melhor que seguir mergulhado num pesadelo sem fim, como o das finanças públicas municipais que, não sendo, de fato, finanças, jamais chegam a ser verdadeiramente públicas.
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