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  • Foto do escritorValdemir Pires

A lógica política do controle interno




Sobre OLIVIERI, Cecília. A lógica política do controle interno: O monitoramento das políticas públicas no presidencialismo brasileiro. São Paulo: Annablume, 2010. 215 p.

 

À mesa se aprecia o prato. Mas é na cozinha que sua qualidade se define. E na cozinha, receita não é tudo: bons ingredientes e perícia são essenciais. Do mesmo modo, é no consumo/acesso que se desfruta das políticas públicas, enquanto que sua eficiência, eficácia, efetividade, legitimidade  e sustentabilidade são gestadas, urdidas, articuladas, temperadas nos escritórios e oficinas governamentais encarregadas  de programas, projetos e atividades. Portanto, o esforço analítico para entender as potencialidades e limitações das políticas públicas não pode se restringir à avaliação delas mesmas, em si, e do nível de satisfação dos beneficiários, nem à simples comparação entre experiências e modelos (“receitas”). Pontos fortes e fracos nas fases de concepção, implementação e avaliação geralmente são detectados no desenho institucional das agências responsáveis pelas políticas e no modo concreto de atuação de seus operadores quotidianos. Ainda que valiosos, estudos estritamente teóricos não ajudam muito – pelo menos não imediatamente – nas tarefas de inovação hoje necessárias no Brasil.

Nas duas últimas décadas, o menu de políticas públicas diversificou-se e complexificou-se no país, colocando as “cozinhas” governamentais em efervescência, resultado das conquistas sociais contidas na Constituição de 1988, das pressões políticas decorrentes da democratização, da disputa entre grupos partidários com distintas visões sobre o papel do Estado e de projeto nacional, e resultado, também, das tendências reformistas derivadas das teses da “reinvenção do governo” e da nova administração pública. Entraram em debate não só temas mais amplos, da política, mas também assuntos específicos, da gestão da máquina pública.

Cecília Olivieri, neste livro, resultante de sua tese de doutorado, consegue a dupla felicidade de apontar caminhos para uma possível “teoria do controle político da burocracia” (p. 197) e desvendar o modus operandi de uma das “cozinhas” mais agitadas do governo federal nas últimas décadas: a Secretaria Federal de Controle Interno (SFC), hoje Controladoria Geral da União (CGU). Ali se misturaram ingredientes de política e de gestão cruciais de uma fase de transição que ainda não terminou. E não terminou por que como tornar o governo mais eficiente e, ao mesmo tempo, mais responsivo e transparente é uma questão ainda em aberto. E a autora soube muito bem discuti-la a partir de uma abordagem crítico-criativa, respaldada pelo pensamento weberiano (aliás quase didaticamente apresentado nas páginas iniciais, nos aspectos que interessam à análise apresentada no livro) e pela contemporânea abordagem neo-institucionalista.

Por meio de entrevistas concedidas por protagonistas das várias mudanças legais, organizacionais e procedimentais no setor de controle interno do governo federal de 1994 a 2004, reforçadas pela análise de numerosos relatórios de auditoria e fiscalização, a autora chega a várias conclusões reveladoras acerca do controle exercido pelo chefe do Poder Executivo Federal – e pelo núcleo de poder ao seu redor – sobre a burocracia dos ministérios, sobre os participantes da coalizão de governo e, mais recentemente (graças às fiscalizações, por sorteio,  do uso de verbas federais pelos municípios e publicidade dos relatórios decorrentes) sobre os chefes dos poderes executivos municipais, normalmente à revelia do controle parlamentar, fraco no país.

Apoiado por um segmento da burocracia pública (o setor de controle interno) revestido da neutralidade possível a partir da atuação técnica, que se articula, nem sempre voluntariamente, com os agentes do Tribunal de Contas da União (responsáveis pelo controle externo), recebendo apoio da Polícia Federal e da Ministério Público, o Presidente (desde o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso até o final do governo Lula) vem submetendo os ministérios e, em boa medida, prefeitos e parlamentares, à obrigação de maior transparência e zelo na condução das políticas públicas. Ainda que sem uma articulação entre o controle e o planejamento/orçamentação – que amplificariam os resultados até aqui obtidos – pode-se afirmar que as políticas públicas estão atualmente menos sujeitas ao descaso, aos desvios e à corrupção, em decorrência de um sistema de controle interno que age tecnicamente, mas cujo trabalho vem se constituindo em fonte de ganhos políticos aos seus promotores, como raras vezes aconteceu no país.

Está correta a autora na sua auto-avaliação: “Se este livro não permite a elaboração de uma teoria do controle político da burocracia, ele apontou (...) novas hipóteses de trabalho e novos caminhos de pesquisa...” (p. 201). E em boa medida se pode dizer que ela o fez porque não se limitou a estabelecer comparações entre o caso brasileiro e as “receitas” americana e alemã de relacionamento entre políticos e burocratas; nem entre o caso brasileiro de controle interno e as “receitas” anglo-saxãs (mais gerencialistas) e ibéricas (mais legalistas). Levou-se em conta o hibridismo de um país cujo Estado volta a ser objeto de mudanças e tema de debate, às voltas, por um lado,  com modelos insinuantes (e brilhantemente defendidos por políticos e acadêmicos) de relação Estado-sociedade e Estado-mercado e, por outro lado, com o legado histórico do chamado “presidencialismo de coalizão”, marcado por uma “gramática política” singular.

Sem perder em rigor teórico, A lógica política do controle interno ostenta um vigor excepcional no campo da aplicação, vez que a mirada histórica e institucional que o permeia do começo ao fim permite ao homem prático – político ou gestor – aprender com o resgate sistemático da trajetória produzida por idas e voltas, avanços e revuos dos fazeres quotidianos necessários à inovação organizacional e à construção de patamares superiores de republicanismo, num país recém-redemocratizado e em processo de conquista de seu lugar entre os economicamente relevantes no cenário global.

            Em suma, Cecília Olivieri se propõe “à análise da construção do instrumento de monitoramento dos políticos sobre a execução das políticas públicas” (p. 22), ou seja, quer verificar histórica e concretamente se, no Brasil recente, o controle interno (que é o meio técnico, gerencial e formal para referido monitoramento) tem se construído e servido à finalidade de colocar a máquina pública e os grupos políticos da coalização na trajetória definida pelos legítimos detentores do poder atribuído pela sociedade a eles, por meio do voto (daí a importância de Weber como referência teórica inicial e o recurso à definição constitucional de controle interno: “poder do dirigente do Poder Executivo de controlar o desempenho de sua própria burocracia”, p. 23).

            A autora parte de duas hipóteses, confirmadas em sua tese (p. 29):

            “1. a reforma do controle interno do Executivo Federal na década de 1990 criou um mecanismo efetivo de controle político sobre a burocracia – que é o órgão de monitoramento sobre a burocracia, a SFC [depois CGU];

            2. esse órgão passou a ser utilizado como instrumento de controle da Presidência sobre a coalizão de governo, pelos seguintes motivos:

            - o Presidente precisa de instrumentos para controlar a coalizão de governo, pois ela envolve a delegação de poder através principalmente de nomeação para cargos em comissão e o Presidente precisa controlar o desempenho de seus ministros, da burocracia que os ministros comandam, e dos indicados políticos espalhados pela burocracia,

            - a instituição da SFC em 1994 gerou capacidade de realizar o controle sobre a burocracia,

            - a fragilidade da autonomia financeira de alguns estados e da maior parte dos municípios e o formato homogeneizador das políticas públicas federais implementadas descentralizadamente permitem ao Executivo direcionar a administração pública dos governos subnacionais.”

            A autora avalia, aparentemente com razão, que sua perspectiva analítica (iniciando com Weber e caminhando em direação ao neo-institucionalismo de Juan Linz, Alfred Stepan, Scott Mainwaring e Arend Lijphart) supre uma lacuna hoje existente na literatura quanto à análise do controle interno como um tema no campo do controle político sobre a burocracia. Essa perspectiva, aliada à atenta e consistente observação (de documentos e de passagens de entrevistas de importantes protagonistas das inovações recentes em controle interno no Brasil) permite afirmativas tão fortes como esta: “O significado político do controle interno é controle político via instrumentos burocráticos sobre a coalizão do governo – controle sobre como indicados dos partidos em postos burocráticos desempenham suas tarefas e como estados e municípios implementam políticas públicas federais, [uitlizam] verbas federais ou [desenvolvem] programas coordenados pelo governo federal.” (p. 61). Sem máscaras: não há neutralidade técnica no controle interno, embora a neutralidade seja o principal fator de legitimação dos seus agentes. Sempre se vai esbarrar na questão que não cala nunca: quem controla o controlador?

            Num “presidencialismo de coalizão” mesclado a um federalismo de ocasião (tão bem flagrado na obra aqui resenhada), o controle interno adquire feições próprias, histórica e institucionalmente singulares. Se o “nosso presidencialismo” e o “nosso federalismo” não são iguais aos dos outros, porque o “nosso controle interno” haveria de ser? E como se edifica o “nosso controle interno”? A resposta a essa pergunta é a pérola do livro de Olivieri. Nos capítulos 3 e 4, a formação da ossatura material desse controle e o seu metabolismo hesitante são apresentados em detalhes: datas, personagens, formas de agir, resultados, avanços, retrocessos. Dá para sentir o cheiro e observar a textura e cor dos ingredientes na cozinha de onde saem os pratos do controle interno, de que os meios de comunicação de massas conseguem captar somente a parte mais rude do sabor (ou só do odor, talvez): os escândalos de corrupção que o sistema de controle interno ajuda a flagrar. Mas, registre-se, é essa a contribuição dos jornais, rádios e TVs ao controle interno: transformam o menu desse controle interno num poderoso instrumento de pressão do Chefe do Executivo e seu grupo sobre os participantes da coalização e os coadjuvantes dos níveis inferiores do federalismo.

            O lado perverso desse tipo de incentivo que brota da opinião pública é que o controle interno passa a se focar mais no combate à corrupção do que na busca de maior eficiência das estruturas, agentes, procedimentos. Diz Olivieri: “Ao focar as fiscalizações no combate à corrupção, a Controladoria Geral da União [núcleo do sistema] precisou aliar novos instrumentos ao ferramental da SFC, já que ele havia sindo construído com o objetivo de aperfeiçoar a gestão dos ministérios e não de investigar atos de corrupção” (p. 178). Do burocrático ao gerencial (à Bresser Pereira) e deste ao policial. Triste sina? Talvez não, ainda.

            Que de onde saiu este A  lógica política do controle interno, saiam outros mais! Fará bem à qualidade do que se obtém com as “receitas” atuais e talvez seja possível ampliar o rol de “pratos” concebíveis no menu da democracia e do bom trato à res pública.

 

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