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  • Foto do escritorValdemir Pires

A cronoeconomização do eu e a “pejotização”



A cronoeconomia, além de ser uma forma de compreender e explicar a passagem do tempo como sequência irreversível de oportunidades (aproveitadas ou perdidas) de obtenção de riqueza (levando à aceitação de que “tempo é dinheiro”), tornou-se a própria mentalidade por trás das decisões e ações quotidianas dos indivíduos. O eu foi colonizado pela lógica maximizante de si mesmo, tendo mérito reconhecido apenas quando torna-se empreendedor (entrepreneur), ou seja, quando se faz senhor de seu próprio tempo e, preferencialmente, do tempo alheio. Sucesso é o que acontece quando a pessoa explora a si e aos outros “agregando valor” sem perder tempo nem oportunidades.

A cronoeconomização do eu modela o indivíduo, agora não mais o proletário ou o capitalista de Marx, não mais o animal laborans ou o homo faber de Hana Arendt, mas o entrepreneur man (não à toa abandonando o latim – idioma da fé medieval – e adotando o inglês – idioma por excelência do capital – para expressar a mudança que se quer aqui destacar).

Compreende-se o que seja o tal homem empreendedor buscando-se a origem do vocábulo entrepreneur, que é tributário do francês entreprendre, vindo do latim inter (reciprocidade) e prehendre (comprador), algo como articulador de reciprocidades, ou intermediário. O empreendedor, ao contrário do que parece quando tanto dele se fala, elogiosamente, não é “gente que faz” (justamente quando tanto se necessita que coisas sejam feitas...), mas gente que articula, junta as partes. Gente como o capitalista típico, que junta máquinas, matérias-primas e mão-de-obra em suas instalações, ali produzindo mercadorias que, depois, serão consumidas graças à articulação entre esse ofertante habilidoso e os demandantes que ele vai buscar no mercado de anônimos portadores de necessidades que suas mercadorias satisfazem ou prometem satisfazer.

A mentalidade do entrepreneur man é, em essência esta: ser dono do seu tempo, patrão de si (minimamente) ou, preferencialmente, de tantos quantos possa subordinar naquilo que se dispõem a articular para enriquecer.

Acontece, todavia, que empreender, a partir de algum momento do século XX, passou a ser o mote para tudo, não só para as atividades econômicas. Assim, a própria existência individual tornou-se objeto de empreendimento – foi cronoeconomizada. Elogia-se, por exemplo, quem estuda para qualificar-se para certos tipos de atividades altamente demandadas (evitando as de baixa procura), fazendo-o com distinção; ao mesmo tempo que desenvolver com grande sucesso atividades para as quais nunca se estudou (que genialidade inata!) granjeia respeito. Empreender é qualidade pessoal (intrínseca ou adquirida), não mais habilidade econômica específica do capitalista, habilidade que, aliás, justificou, no passado, os ganhos excepcionais que ele auferia.

O que se dá é que, agora, viver é empreender. Todos aqueles que não queiram ou não consigam respeitar esta lógica são desprezados, e o fracasso com que são punidos é tido como merecido, decorrência natural da própria negligência. Apenas o entrepreneur man merece respeito e é digno do sucesso que obtém com os próprios esforços. Participar da vida econômica como “trabalhador” é aceitar a condição de insumo inerte, geralmente “contratado” pelo pouco que vale, dada a abundância desse recurso utilizada na produção.

A cronoeconomização da vida, portanto, distingue dois tipos de tempo dedicado à atividade econômica: o tempo do articulador (empreendedor) e o tempo do articulado (empregado). Sua mais recente novidade é considerar que o articulador não é mais o capitalista, apenas. Qualquer trabalhador pode se tornar o capitalista de si mesmo... se for suficientemente empreendedor, ainda que sem capital.

Chegou, portanto, a tal nível a cronoeconomização, que ser, por excelência, agora é empreender, é dedicar o tempo da própria vida (não mais delimitado entre tempo de trabalho e tempo livre) às atividades necessárias ao sustento (mas sonhando enriquecer) e pensar que esta é a condição única e correta para merecer esse sustento, meritoriamente adquirido e não adquirido graças ao mérito alheio (de um empregador). É este o raciocínio com que se vitimiza, sem se dar conta, por exemplo, todo aquele que, no Brasil, chamam de pejotizado, indivíduo que tem um número no CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas e não um CPF – Cadastro de Pessoa Física), oferecendo-se não como empregado, mas como empresa (“Sou PJ!”) contratada para certas atividades, mormente serviços, como transporte de passageiros ou entrega de mercadorias com único carro de passeio ou moto, para citar ocupações em que a mentalidade de empreendedor explodiu recentemente. Nesses casos, numa das pontas fica escancarada a realidade do mercado de trabalho: excesso de ofertantes e decorrentes baixos salários; na outra ponta, grita o ego exacerbado: desejo de ser patrão – ainda que de si mesmo. E o resultado é, por um lado, superexploração dos indivíduos e, por outro, desarticulação do sistema social de proteção ao trabalhador – sob a justificativa de que este vai desaparecer como agente econômico e mediante a falsa promessa de que assim será melhor para todos.

É assim que os entrepreneur mans vão aceleradamente ocupando os lugares antes ocupados pelos antigos proletários, cujas lutas sindicais e partidárias (que horrorizam o “empreendedor” – falso empreendedor) conquistaram jornadas de trabalho legalmente menores (para que pudesse haver tempo livre para usufruir a vida) e o direito à aposentadoria (para que não se morresse tendo apenas trabalhado ou para que não se morresse de tanto trabalhar).

É assim que o capitalismo, tal como até aqui conhecido, desmorona sob os narizes empinados dos que mais sofrem com essa derrocada: transformando o mérito de sagaz extrator de mais-valia do empresário no falso mérito do “patrão de si” pejotizado. É assim que a cronoeconomia ilude os indivíduos desprovidos de meios de produção ao lhes prometer que serão integralmente donos de seu próprio tempo.

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