Conto de Valdemir Pires na coletânea O escritor que nunca viu, organizada por C. Bonomini, F. Meireles e G. Vieira (2010):
Só
– Fale, por favor! O que o preocupa?
– Eu não gostaria de tratar deste assunto aqui, onde podem nos bisbilhotar, lendo o que estamos conversando...
– Ha, ha, ha, ha! É aqui ou em lugar nenhum: personagem não existe fora do texto. Você sabe disso melhor do que eu, certo?
– Pois é...
– Prossiga, então. O que o está incomodando?
– Na verdade, seu jeito, sua impertinência...
– Se você não for mais claro, não vou entender.
– Você fala de um modo muito formal. Eu o preferiria mais coloquial.
– A culpa é sua! Vá estudar, vá se preparar, adquira melhor domínio da forma: “O procedimento, eis o único herói da literatura”.
– Pelo menos hoje, seja menos pedante... e mais compreensivo. Não estou bem.
– Vamos recomeçar, do começo.
Pausa, silêncio.
– E aí, meu! Que é que tá pegando? Manda que eu tô ouvindo! Valeu?
– Valeu! É por aí.
– Que mais?
– A impertinência. Não gosto nada, nada que insista em me imitar e em tentar revelar aspectos da minha personalidade para outros, que eu sequer conheço.
– He, he, he! Depois eu é que falo formal e pedantemente!!! Você poderia ser mais discreto comigo. Se não se revela a mim, não posso revelá–lo aos outros. Ou me engano? “O poeta é um fingidor, finge tão completamente...”
– Tá, certo; tá certo... Mas você poderia dar uma forcinha. Por exemplo: poderia me arrastar um pouco para os seus próprios desígnios...
– Se quer um personagem que seja mágico, trate de criá–lo.
– Nunca ouviu falar de personagem que adquire vida própria?
– Você acredito nisso, em duende, em papai noel, em bruxas e em que mais? Não acha que são os autores que se deixam levar por outras leituras, vivências recônditas e coisas assim, sem perceber? Ou que abrem as portas do inconsciente para estórias que estavam lá e plaft, pipocam um personagem, uma cena, uma trama?
– De onde você tira essas ideias?
– Eu é que lhe pergunto!
– Assim não dá! Parece que estou sozinho, falando comigo mesmo!
– Parece, é?
– Quer trocar de lugar?
– “Eu não, quero uma vida inventada.”
– Diga–me: quem você é? De onde veio? O que deseja? Como vai fazer para conseguir? Acha que obterá?
– Ei, eu acho que você está pirando! Melhor me deixar, porque o meu destino depende de você.
– Mas eu não terminei a sua estória. Prefere uma situação assim, incompleta e sem possibilidade de conclusão?
– E você, que acha desta certeza de que terá fim, sem saber quando, onde, nem como? Além disso, eu sei porque apareci por aqui. E você, sabe por que anda por aí?
Toca o telefone. O editor cobrando os originais, outra vez. A mesma explicação – um personagem que não desembucha – antes tida como coisa de artista, agora, pela sexta vez, começa a parecer coisa de louco ou de incompetente. Fica combinado o adiamento por mais duas semanas. O tempo passa, o livro não avança. O adiantamento terá que ser devolvido. Desentendimentos.
– Você não vai mesmo me ajudar?
– Mas o que eu posso fazer?
– Você é forma, puro procediment Seja um herói!
– Primeiro tem que haver literatura...
– Estou só, apesar de acompanhado por você e tantos outros que eu mesmo criei? É isso?
– Eu não disse nada disso. De minha parte, não posso dizer que estou com você: mais do que isso, estou em você. Mas se o que quer é companhia, alguém que o compreenda...
– "...envolver-se com os problemas de compor um livro é uma boa maneira de evitar ficar pensando no amor."
– Que tal me dar um amor, para que eu saiba do que se trata?
– Como gostaria que ela fosse?
– Lá vem você de novo! Caramba! Como posso saber? Páginas e páginas me descrevendo, por dentro, por fora, de frente, de lado... Lançou-me neste espaço sem nada a não ser a cadeira em que estou sentado, diante desta foto de mulher... ... ... Ah, sim, agora vejo: é ela, é ela. Como é linda! Começamos a nos entender... O que aconteceu entre vocês?
– Quem foi que outro dia me pediu para ser mais discreto, evitando revelar o que eu não quero que seja repassado para leitores que não conheço? Eu concordei. Por isso travei... E perdi meu editor.
– Editor se encontra por aí, bom personagem é que são elas... Se quer que eu seja um, não me desaponte, não desaponte os que me conhecerão...
– Acha-se um sábio ou apenas um esperto?
– Acho que vou mandá-lo para aquele lugar...
– Ha, ha, ha, ha! Eu já fui para bem adiante deste lugar, e não é um qualquer como você, que ainda nem existe, que me apoquenta fazendo este sinal com os dedos... Quer saber? Vou amputar-lhe os dedos médios...
– Esteja certo de que não doerá e não fará falta alguma. Você, entretanto, continuará na merda, dependendo de mim.
– Ha, ha, ha, ha... Essa é boa. Um sujeito dependendo de outro que sequer existe e nem vai existir se esse mesmo sujeito não quiser. Você tem de fato uma criatividade digna de nota!
O telefone toca. Toca, toca, toca, toca.
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